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quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

hoje não vou deixar pra amanhã

Não se pode começar uma história sem começo. O começo é necessário. É preciso. Mas como começar quando o começo é impreciso (e, pra piorar, indeciso)? Essa história é menos poética que matemática. O começo dessa história é como um cálculo interminável. Mas não se trata de um começo exato - embora seja um começo de exatas. Não se trata de uma mera fração. Não estamos falando de uma história simples como uma subtração, compreensível como uma adição, decifrável como o delta de uma equação. Essa história mais parece uma inequação. Um complexo cálculo matemático. Uma soma entre infinitos fatos fragmentados multiplicados por dias nublados.  

Existe consequência que não obedeça a uma sequência?

Posso me ver sorrindo meiga e desajeitadamente, cabelos sempre enfeitados e bem penteados, graças à “melhor mãe que eu tenho no mundo”, como eu sempre a chamava, como se eu tivesse outras mães no mundo. E como se fosse necessário ter outras mães no mundo para saber que aquela era a melhor mãe que o mundo podia ter inventado - e me dado. Tímida, a minha versão anos mais nova hoje me informa sua idade através de poucos dedos levantados, pequena o suficiente para caber em colos e nestes porta-retratos. Estamos agora a pouco mais de uma década de distancia, mas eu ainda a conheço muito bem. Sei que aquela versão de mim diria à sua (ou minha) mãe “Já? Passou rápido, né, mãe? “ se eu lhe dissesse que hoje estou com dezessete. A minha versão mais nova amava livros - sobretudo os de "capa dura" -, gostava de doce e das meninas super-poderosas. E quase sempre sua resposta pra quase toda pergunta era “por mim, tudo bem”. Porque tudo quase sempre ia muito bem. Ela era meio desastrada. Não é à toa que esqueceu em mim a sua alma. Por isso, temos em comum o sorriso, a calma. Os antigos segredos e medos. O que mudou é que agora temos diferentes idades, alturas, ideias, pensamentos. E por mim, tudo bem. O problema é que hoje devo ter o mesmo peso daquela criança que fui. Hoje sou sua versão mais velha, mas não sou sua versão mais saudável, mais forte, mais ativa, mais viva. As mudanças da pré-adolescência acabaram dando de cara com a tal da insegurança pré-adolescente, e as duas juntas receberam visitas insistentes de comentários insensíveis disfarçados em brincadeiras inofensivas.  Tudo isso e mais certa dose de instabilidade familiar foi a receita perfeita para este insosso transtorno alimentar. Tudo quase sempre ia muito bem. Mas o quase dessa frase foi ganhando muita importância naquela fase. E, quando fui me ver no espelho, já não consegui me encontrar: estava escondida sob a anorexia. Eu desaprendi a socializar sem me preocupar com o quanto vou almoçar ou o que vou lanchar ou a que horas vou jantar. Não lembro a última vez em que coube em roupas para meninas da minha idade. Hoje eu convivo com as interrogações menos preocupadas do que curiosas sobre o porquê de eu estar assim. Deixo que me machuquem, que me invadam. Deixo que as interrogações aluguem o meu pensamento. Hoje uma multidão já faz da minha mente moradia. Por que estou assim? Eu também queria essa resposta. Mas não sou a vítima dessa história. Sempre penso que poderia ter sido mais forte. Mas o fato é que anorexia, diferente do que se diz, nunca é motivada por futilidade ou vaidade. Anorexia não é escolha. É uma doença, e, como tal, chega sem bater na porta. Chega, entra e tranca a porta, enquanto a nossa saúde e liberdade ficam esquecidas do lado de fora.
Já não sei o que é viver livre. Mas quero muito saber se isso ainda existe. Quero ser saudável, forte, ativa, viva. 
Cansei de ter medo de batalhar. Cansei de ver a minha liberdade pelo olho mágico da porta.
Cansada de não batalhar, quero batalhar até cansar.

E, pela minha família, pela minha vida, por tudo o que vi, deixei de ver e ainda vou viver, hoje não vou deixar pra amanhã.