Não se pode começar uma história sem começo. O começo é necessário. É preciso. Mas como começar quando o começo é impreciso (e, pra piorar, indeciso)? Essa história é menos poética que matemática. O começo dessa história é como um cálculo interminável. Mas não se trata de um começo exato - embora seja um começo de exatas. Não se trata de uma mera fração. Não estamos falando de uma história simples como uma subtração, compreensível como uma adição, decifrável como o delta de uma equação. Essa história mais parece uma inequação. Um complexo cálculo matemático. Uma soma entre
infinitos fatos fragmentados multiplicados por dias nublados.
Existe consequência que não obedeça a uma sequência?
Posso me ver sorrindo meiga e desajeitadamente,
cabelos sempre enfeitados e bem penteados, graças à “melhor mãe que eu tenho no
mundo”, como eu sempre a chamava, como se eu tivesse outras mães no mundo. E como se fosse necessário ter outras mães no mundo para saber que aquela era a melhor mãe que o mundo podia ter inventado - e me dado. Tímida, a minha versão anos mais nova hoje me informa sua idade através
de poucos dedos levantados, pequena o suficiente para caber em colos e nestes
porta-retratos. Estamos agora a pouco mais de uma década de distancia, mas eu
ainda a conheço muito bem. Sei que aquela versão de mim diria à sua (ou minha)
mãe “Já? Passou rápido, né, mãe? “ se
eu lhe dissesse que hoje estou com dezessete. A minha versão mais nova amava livros - sobretudo os de "capa dura" -, gostava de doce e das meninas super-poderosas. E
quase sempre sua resposta pra quase toda pergunta era “por mim, tudo bem”. Porque tudo quase sempre ia muito bem. Ela era meio
desastrada. Não é à toa que esqueceu em mim a sua alma. Por isso, temos em
comum o sorriso, a calma. Os antigos segredos e medos. O que mudou é que agora
temos diferentes idades, alturas, ideias, pensamentos. E por mim, tudo bem. O problema
é que hoje devo ter o mesmo peso daquela criança que fui. Hoje sou sua versão mais
velha, mas não sou sua versão mais saudável, mais forte, mais ativa, mais viva.
As mudanças da pré-adolescência acabaram dando de cara com a tal da insegurança
pré-adolescente, e as duas juntas receberam visitas insistentes de comentários
insensíveis disfarçados em brincadeiras inofensivas. Tudo isso e mais certa dose de instabilidade
familiar foi a receita perfeita para este insosso transtorno alimentar. Tudo
quase sempre ia muito bem. Mas o quase dessa frase foi ganhando muita importância
naquela fase. E, quando fui me ver no espelho, já não consegui me encontrar: estava escondida sob a anorexia. Eu desaprendi a socializar sem me preocupar com o quanto vou
almoçar ou o que vou lanchar ou a que horas vou jantar. Não lembro a última
vez em que coube em roupas para meninas da minha idade. Hoje eu convivo com as
interrogações menos preocupadas do que curiosas sobre o porquê de eu estar assim. Deixo que me machuquem, que me
invadam. Deixo que as interrogações aluguem o meu pensamento. Hoje uma multidão
já faz da minha mente moradia. Por que estou assim? Eu também queria essa resposta.
Mas não sou a vítima dessa história. Sempre penso que poderia ter sido mais forte. Mas o fato é que anorexia, diferente do que se diz, nunca é motivada por
futilidade ou vaidade. Anorexia não é escolha. É uma doença, e, como tal, chega sem bater na porta. Chega, entra e tranca a porta, enquanto a nossa saúde e liberdade ficam esquecidas do lado de fora.
Já não sei o que é viver livre. Mas quero muito saber se isso ainda existe. Quero ser saudável, forte, ativa, viva.
Já não sei o que é viver livre. Mas quero muito saber se isso ainda existe. Quero ser saudável, forte, ativa, viva.
Cansei de ter medo de batalhar. Cansei de ver a minha liberdade pelo olho mágico da porta.
Cansada de não batalhar, quero batalhar até cansar.
Cansada de não batalhar, quero batalhar até cansar.