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sexta-feira, 24 de junho de 2016

o feminismo é preciso?

Tinha gente, tinha carro e tinha gente dentro e fora dos carros no posto de gasolina que fica em frente ao prédio do pré-vestibular, onde a aula estava longe de chegar ao fim, diferente daquela tarde que já estava prestes a partir. Em frente ao pré-vestibular e ao lado do posto de gasolina, um pequeno mercado movimentado, compensando a solidão da enorme igreja vazia. E, num dos lados desse cenário bem montado, estava eu, sozinha. Sozinha vírgula: tinha gente, tinha carro e tinha gente dentro e fora dos carros ao meu redor. Mas eu não conhecia um só rosto que via. Portanto, embora acompanhada, eu estava sozinha. Ou vice-versa.

Meus pés estavam estacionados no passeio. Mas meus olhos acompanhavam os carros que corriam na pista, esperando que os papéis se invertessem. Quando enfim a correria dos carros cessou, dei os primeiros passos rumo ao passeio em frente, talvez mais hesitante do que decidida. Já andava no meio da pista quando uma voz que vinha do passeio para onde eu estava indo chegou ao meu ouvido: Vem! Pode vir! Vem logo!, gritava o sujeito de voz e rosto desconhecidos. Eu estava prestes a concluir que aquilo nada mais era que uma ajuda gentil, quando ouvi essa mesma voz se dirigindo a mim com termos que eram o avesso do que entendemos como gentileza. Àquela altura, poucos passos me separavam do passeio onde estava não só o ponto de ônibus aonde eu queria chegar, mas também o sujeito que eu temia encontrar. Era tarde pra hesitar e voltar. Cheguei ao passeio e os gritos ainda chegavam ao meu ouvido. O sujeito, que agora estava alguns passos atrás de mim, repetia aqueles gritos que nós todas diariamente ouvimos. Aqueles gritos que simbolizam o preço, a punição, o pagamento pelo que diariamente fazemos: ser mulher.

Aqueles gritos que têm o poder de fazer nossos passos acelerarem ao máximo. O poder de fazer nossas mãos tremerem com o pavor que congela o coração e amplifica a pulsação. O poder de calar nossa fala, de tirar nossa calma. O poder de nos fazer acreditar que não temos poder.

Cheguei ao ponto de ônibus arfante, trêmula, certamente pálida e nunca me vi tão feliz e aliviada por ter encontrado um colega. Parei ao seu lado e logo improvisei uma conversa, próxima a ponto de preferir explicar a situação para que a proximidade fizesse sentido. Próxima o suficiente para que o sujeito, que agora passava em frente a mim, seguisse direto sem sequer olhar para o meu rosto. Afinal, eu estava ao lado de um homem que, por ser homem, não tem preço, nem punição, nem pagamento por ser homem. O sujeito seguiu em frente, ignorando o homem ao meu lado – e a mim, por tabela. Mas será que esse seria o desfecho dessa história se eu estivesse sozinha?
O feminismo é exatamente sobre isso. Não sobre ódio à figura masculina. Não é uma luta por superioridade. Mas por igualdade. É uma luta para que a gente seja respeitada não por tabela, mas por ser gente. A luta para que nós não estejamos sob perigo cada vez que estivermos andando por aí sozinhas. Para que a gente deixe de ser constrangida, intimidada e objetificada sem que para isso seja necessário ter a sorte de encontrar um homem conhecido num ponto de ônibus. Feminismo é sobre a gente entender que não deve haver poder que nos faça acreditar que não temos poder. O título desse texto é uma pergunta: feminismo é preciso? Desculpa responder com outra pergunta, mas será que ainda é preciso responder a isso? Essa questão, eu passo. O x já está claro. Não é preciso nenhum cálculo para encontrá-lo.

Feminismo é sobre ser livre. Livre dos gritos externos. Mas também livre dos nossos gritos internos. Ou seja, é também uma luta contra cobranças que nós estamos condicionadas a fazer a nós mesmas. Cobranças alimentadas pelos padrões, pressões, vaidades e futilidades midiáticas. E é exatamente aí que está a questão de nível avançado dessa prova. A questão que vale mais pontos e que muitos deixariam para responder por último, depois de raciocinar, calcular, apagar e não encontrar o valor de y: afinal, como uma pessoa que teve anorexia pode ser contra vaidades da mídia? Como uma pessoa que teve anorexia é contra gritos e pressões internas, se isso é o que lhe motivou?

Algo me diz que a questão de nível mais avançado foi mal formulada: quem foi que disse que anorexia é sempre relacionada à vaidade, à futilidade, à mídia? Anorexia nunca é uma escolha. Anorexia não é estilo de vida. É, muitas vezes, uma tentativa mal sucedida de controle de uma situação, de fuga de um medo, nada tendo a ver com imagem, com vaidade.
Olha só que boa notícia: logo a última questão, a de nível avançado, não faz o menor sentido. Não há como achar o valor de y. Vai ter que ser anulada. Ponto de graça. Ou, no mínimo, ponto redistribuído.