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sábado, 18 de abril de 2015

é isso

Conviver com um transtorno alimentar é isso. É perder quilos e amigos. É não caber em roupas e em si. É querer se conter. É querer explodir. É ser contradição. É não temer dizer não. É querer desistir de restringir. E no fim, sempre desistir de desistir. Ter um transtorno alimentar não é comer pra viver, é viver pra não comer. É se olhar no espelho e não se reconhecer. É perceber que sua alma se perdeu sob seus ossos, a cada dia mais expostos. É sair de casa e sempre dar de cara com questionários e comentários. É ser invadida, observada. É estar sempre cansada. E, por tudo isso, querer se prender e se perder dentro de si. É querer ter motivos para sorrir, se esquecendo de que sempre tem motivos por aí. É, todos os dias, deixar o hoje pra amanhã. É chegar ao seu limite e sempre achar que poderia ser pior. É acreditar que se consegue seguir só. E que, consigo, nada demais e de mal vai acontecer. É ser internada e só aí perceber que não se consegue seguir só, que algo de mal sempre esteve prestes a acontecer, que os motivos para sorrisos estavam comigo, mas eu não pude ver. É fazer do meu corpo um campo de batalha. É decidir lutar, todos os dias, contra sua própria mente. E ir reaprendendo a viver como se aprende a andar: calma e gradativamente. Caindo, mas levantando e seguindo. 

terça-feira, 31 de março de 2015

a sete chaves

A tarde está chegando ao fim, mas tenho tanto dever pra fazer que é como se o dia ainda estivesse no início. Sim, me adaptar a este novo ritmo ainda parece uma tarefa difícil. A tarde está chegando ao fim e eu ainda estou aqui neste ônibus, encaixando palavras e vírgulas enquanto passo por muitos pontos. Eu poderia estar agora muito ocupada contando os minutos até chegar em casa, mas o meu cansaço faz do horário um complexo cálculo matemático. Este ônibus passa e para em muitos pontos, que, nesse contexto, imitam o que as vírgulas fazem num texto: servem como uma breve pausa que antecede o ponto final, onde vou descer e, enfim, caminhar por ruas e mais duas longas praças até chegar em casa.
Estar nesse ônibus é a confirmação de que a vida é mesmo muito incerta, muito indecisa. Muito corrida. Muito esquisita. Eu estou agora chegando da escola, sendo que, há pouco tempo, eu estava  internada sem previsão de alta.
Esse fim de tarde me faz sentir imersa ao mundo real. E me faz lembrar alguns fins de tarde que vivi lá no hospital, como aquele em que fiz perguntas repetitivas à minha intuição sobre o dia em que eu voltaria à vida. Ou aquele outro fim de tarde em que percebi que a minha nutricionista não é assim, simples e tecnicamente, a minha nutricionista. Eu descobri que ela é minha nutricionista, minha psicóloga, minha amiga, uma das minhas pessoas preferidas, um dos meus exemplos de vida. Não sei se há explicação para a nossa ligação. Tudo o que sei é que um dia eu descobri que Michelle estava o tempo todo entre os poucos em quem eu encontro tudo o que quero ser quando crescer. Eu sinto como se ela soubesse cada um dos meus medos. Ela parece entendê-los. E consegue me convencer a vê-los de um outro jeito. Michelle me apresentou uma música linda. E uma forma mais simples de lidar com a vida.
A tarde está chegando ao fim e eu ainda tenho muito dever pra fazer. Mas hoje eu percebo que nada precisa ser feito com desespero.
Todos os dias, aprendo com Michelle um pouco sobre serenidade, simplicidade, amizade. Por isso e todos os outros tantos motivos, hoje a guardo aqui comigo.
A sete chaves.

terça-feira, 24 de março de 2015

a vida me dando boas vindas

Depois de quarenta e quatro dias de falta, enfim vesti a minha farda. Não muito preparada, um pouco preocupada e muito entusiasmada, segui a caminho da minha antiga rotina. As ruas congestionadas e as expressões apressadas continuam as mesmas. Pelo visto, nada mudou muito aqui fora desde que fui embora, enquanto o contrário aconteceu com a minha história. De repente me vejo a poucos minutos de distância da minha escola, muito preocupada, um pouco entusiasmada e nada preparada. Vou escrevendo e vendo a vida pela janela, me esforçando pra disfarçar a ansiedade acumulada pelos quarenta e quatro dias de espera. Imagino quem eu vou ver, me pergunto como vai ser, penso no que vou dizer. Me perco em meio a tantos questionamentos e pensamentos, e ainda sem encontrar qualquer resposta, me vejo chegando na escola.
Não sei onde estou. Estou perdida entre abraços, e quando me acho, já estou na sala do terceiro ano B, onde as luzes apagadas são acendidas com a minha chegada, e vejo todos batendo palmas me vendo parada, emocionada, sem saber o que dizer. Eu achava que esse dia não poderia ser melhor, e aquela festa surpresa me faz ter essa certeza. Vejo muito carinho, muitos doces sobre a mesa, e então me vejo rodeada de amigos que dizem como você está?, que saudade de você, e eu sorrio e repito obrigada e nem sei como te agradecer, enquanto penso que bom é ter energia pra me sentir viva. Que bom é ver a vida me dando boas vindas e voltar a fazer parte do terceiro ano B, que bom é comer pra comemorar e comemorar por reaprender a comer e ver que isso pode também ser um prazer. Que bom é voltar a viver.

sexta-feira, 20 de março de 2015

de volta à vida real - último dia

Não sei como começar esse texto. Será que eu devo deixar a novidade pro final? Ou já conto no início que deixei o hospital? A notícia é tão boa que eu não sei como dizer, embora eu já tenha dito não só na última frase, mas também no título, tão autoexplicativo. Pois é, amigos, hoje não foi só o último dia do verão. Chegou ao fim também o meu período de internação. Hoje, por volta do meio dia, o momento se resumia nas palavras alegria, despedida e nostalgia. Eu dei tchau ao hospital e, enfim, fui ao encontro da vida real.
O mundo parece muito mais bonito. E muito mais corrido. Acho que estou achando a vida corrida por estar acostumada àquela monotonia hospitalar. Eu tinha esquecido que o ritmo é outro do lado de cá. Esqueci também que a vida guarda em si tanta beleza. Lembrei disso há pouco tempo, no exato momento em que reencontrei a minha antiga leveza. Sinto que mudei. Me sinto mais ativa, viva, e até mais bonita. Estou mais consciente. Descobri em mim a força que antes eu julgava ser inexistente. Mas não se enganem ou achem que estou enganada: sei que estar em casa não significa o fim desta batalha, mas o contrário, afinal, tudo o que mudou foi só o seu cenário. A batalha está só começando. E eu vou continuar compartilhando os meus passos neste espaço. Só não vou mais poder escrever com tanta frequência. Afinal, a vida continua com toda sua demanda. Então vou tentar escrever um texto por semana.
A batalha recomeça a cada manhã. Por isso é que acabo de guardá-la na minha pele, em forma de uma tatuagem: para que eu não esqueça que ainda é preciso muita coragem (mas essa parte fica pra um outro dia).
Vou ficando por aqui, deixando registrado o meu sincero agradecimento a todos os que estiveram do meu lado lá no hospital.
Agora é hora de enfrentar a luta por aqui, na vida real. 

terça-feira, 17 de março de 2015

a resposta - dia trinta e sete

Se essa internação for comparada a uma prisão, posso dizer que estou solta da algema que me prendia a esta cama. A partir de ontem, deixei de receber o líquido protéico cor de café com leite que ia do meu nariz ao meu estômago através de uma sonda. A alegria de ter recebido esta noticia não se explica só por eu já estar cansada da monotonia de cada dia. Eu acredito que este tenha sido um progresso nesse longo processo. Mas a novidade não significa que estou em plena liberdade. Ao longo dessa semana, o meu corpo vai estar sob análise. Tudo vai depender de como ele vai decidir responder. E essa resposta todos vamos saber na sexta-feira.
Se mantenham na torcida para que esta resposta seja positiva. Quanto a mim, vou continuar fazendo a minha parte, renovando a cada manhã a minha coragem.

Por enquanto, tudo o que sei é que, se expectativa fizesse o tempo passar rápido, hoje já seria sábado.

segunda-feira, 16 de março de 2015

juntando as peças - dia trinta e seis

Eu e o meu pai montamos quatro quebra-cabeças nesse final de semana, o que foi o pretexto perfeito para passarmos horas na varanda, o meu refúgio desta cama. Mas admito que não tenho toda essa moral pra poder escrever a primeira frase no plural, afinal, enquanto o meu pai encaixava todas aquelas cento e tantas peças, eu me mantinha mais concentrada nas palavras que construiam nossas conversas.
No chão da varanda, vejo paisagens impecáveis sob um céu azul claro. Construir toda essa flora realmente deu trabalho. Meus olhos passeiam pela área verde quando, de repente, encontram castelos grandiosos e belos. Ao redor deles deve ser o maior silêncio, eu penso. Então vejo, não tão distante dos castelos, vários prédios próximos uns aos outros, antigos e coloridos, que me levam até as ruas do Pelourinho, onde eu ia, quando muito, duas vezes por ano. É, parece que sinto saudade até do Pelourinho, que, embora tão bonito, passava por mim despercebido. Sinto saudade de tudo o que já vi lá fora. Saudade de tudo aquilo que nunca pareceu tão importante quanto agora. Por isso, enquanto o meu pai construia todos esses lugares, eu tentava, através das nossas conversas, encontrar peças que às vezes me faltam, como a paciência e a coragem. Foi bom fazer essa viagem, mas é hora de devolver todas aquelas peças à brinquedoteca. O bom é que vai ficar guardada em mim a força que acabei encontrando em mais uma das nossas tantas conversas.

quinta-feira, 12 de março de 2015

encontrei os dois lados - dia trinta e dois

Passei vários anos novos na companhia de uma meta antiga. Uma meta que, em todo fim de ano, acabava na lista das não cumpridas. Você deve estar pensando que esse desejo era sempre adiado por ser algo muito elaborado, que só podia ser realizado a longo prazo. Se acertei seu pensamento, você está enganado. A minha meta podia facilmente ser cumprida, mas eu alegava estar sendo impedida graças à correria do dia a dia. Mas, agora, essa justificativa já não condiz com a minha nova rotina.
Eu já não estou imersa à vida corrida que agora vejo pela janela. E estar aqui me faz querer estar lá. Mas também me faz entender que há coisas boas em qualquer lugar, inclusive no lado de cá. Eu queria estar imersa à vida corrida que agora vejo pela janela. Mas, em compensação, agora não há falta de tempo que me impeça de cumprir a minha antiga meta. E torná-la concreta é o que estou fazendo neste exato momento.
O que estou fazendo? Escrevendo.
E estar conseguindo construir este espaço me faz perceber que tudo tem dois lados.
Cabe a cada um de nós saber enxergá-los. 

segunda-feira, 9 de março de 2015

Gregorio - dia vinte e nove

Eu estou há exatamente um mês nesse hospital. E já não sei quantas vezes escrevi sobre a saudade que sinto da vida real. Então, dessa vez, venho falar sobre um outro mês em que estive quase tão bem quanto estou hoje. Aquele mês de onde agora estou tão longe, embora ainda me lembre como se tivesse acabado ontem.
Foi muito antes de chegar a este hospital. Mas tudo já não estava normal. Esse conflito já fazia do meu corpo um abrigo, implorando para se manter escondido sob o meu sorriso. Essa doença distorceu a minha consciência. E fez da minha mente um campo de batalha. De um lado estava eu, querendo me recuperar. Do lado de lá estava esse transtorno, que fazia com que buscar motivos para batalhar parecesse não fazer sentido, afinal, era como se eu já tivesse perdido. Foi quando eu soube que, em exatamente um mês, eu iria poder ver o meu ídolo.
Ele estaria em Salvador por dois dias, trazendo consigo uma peça e, sem sequer saber, pra mim, um bom motivo. Ir à peça nos dois dias? Eu sabia que seria difícil. Mas, ao invés de bater três vezes no tatame, eu propus a mim mesma e aos meus pais um desafio: eu iria poder vê-lo nos dois dias só se eu conseguisse, em um mês, ganhar dois quilos. Sei que, pra vocês, esse desafio pode parecer fácil demais. Afinal, não há nada mais irrelevante do que dois quilos a mais. Mas a verdade é que quando se tem um transtorno alimentar, quinhentos gramas a mais parecem uma missão quase impossível. Agora imaginem dois quilos. No entanto, eu tinha um bom motivo. Então aquele desafio realmente não me pareceu assim tão difícil. Eu tinha um compromisso comigo. Eu precisava enfrentar e vencer aquele desafio. Pela primeira vez, o meu medo não me parou. Me impulsionou a seguir. E foi o que eu fiz. Eu venci. E ganhando quilos, eu recuperei e distribuí motivos para sorrisos. Em um mês, ganhei a liberdade de que eu me privei durante um ano. Naquele momento, deixei de ser motivo para tanto lamento. Eu me sentia leve por já não estar prestes a ser levada pelo vento. Eu pude ver os meus pais em paz, ocupados em não estarem tão preocupados. E essas rimas nunca vão ser o suficiente para traduzir a minha alegria. Eu voltei a sentir cheiro de esperança e de doce de côco na minha casa. Naquele momento, eu descobri que estava pronta pra enfrentar esta batalha. E é por isso que estou há um mês nesse hospital: porque, mesmo caindo, não me deixei ser derrotada. Eu descobri que se escondia em mim a força de que eu preciso nessa caminhada. E eu nunca iria saber disso se não fosse por você, Gregorio. Por isso, em todas as outras vezes que a gente se viu depois desse desafio, eu tentei te agradecer através do meu sorriso. Mas agora me permito fazê-lo por meio destas palavras. Obrigada, Gregorio. Muito obrigada. Sei que ainda vou ver você mais vezes. Então me espera daí de fora, que em breve estou de volta.

Entende agora por que uso tanto o obrigada?

sábado, 7 de março de 2015

meus pais - dia vinte e sete

Um transtorno alimentar faz uma única vítima, o que não significa que a vítima seja a única pessoa atingida. O convívio íntimo com a doença me faz, todos os dias, confirmar essa certeza. As marcas desse crime não estão só em mim. Também podem ser vistas nos olhos preocupados dos que estão ao meu lado. A contradição é que estes são injustamente julgados como culpados. Coitados.
Seja qual for o motivo, se algo dá errado com um filho, a culpa recai sobre seus pais. Os sabedores de tudo lhes tiram a paz, apontando seus erros, ignorando seus acertos. E estranho seria se fosse diferente. Afinal, os sabedores de tudo adoram opinar sobre o final de um espetáculo. Mas não querem saber o que acontece nos bastidores. Os sabedores de tudo não sabem as nossas dores.
Os meus pais fizeram o que puderam por mim. A cada dia, a cada refeição, eles lutaram pela minha salvação. Por mais de uma vez, o meu pai deixou para trás o sono, o almoço, o ânimo e o lazer. Nenhuma importância tinha o UFC que, naquela noite, passava na TV. O que ele fez foi, mais uma vez, me ouvir, tentar me entender. A minha mãe me deu suas mãos, sua companhia. Minha mãe me deu toda a sua vida na tentativa de salvar a minha. Em seus olhos eu via: a minha saúde e a minha alegria era tudo o que ela queria. A minha mãe perdeu noites por mim. E se hoje escrevo esse texto nesse hospital é porque eu, ainda assim, não consegui.
A parte boa dessa historia é que agora estou aqui, com a ficha caída, levantando da minha queda graças à força que os meus pais me deram com tanto afeto. Em breve eu vou estar de pé para lhes agradecer através dos nossos abraços, onde todo o amor que sinto se mantém guardado. 

quinta-feira, 5 de março de 2015

olha só pra mim - dia vinte e cinco

Eu estou me sentindo diferente. E, agora, o que sinto já não parece distorcido. Pela primeira vez em não sei quanto tempo, o modo como me sinto condiz com o que realmente sou nesse momento. Eu não me sinto diferente. Eu estou diferente. A foto que a minha mãe acaba de tirar é a prova disso. Olha só pra mim, eu digo para mim mesma em pensamento.
Eu me excluí por um bom tempo. Eu desapareci. O cansaço nos meus olhos e aqueles ossos expostos foram tudo o que sobrou de mim. Eu fui embora. Mas, agora, sinto que estou à caminho de ser quem eu era. Eu demorei. E ainda não cheguei. Mas continuo na estrada, me sentindo pronta pra essa longa batalha. Eu estou trazendo comigo o meu antigo sorriso. Eu estou aprendendo a dar à minha consciência um pouco mais de leveza. Olha só pra mim, eu digo para mim mesma. Aos olhos da minha mãe, eu trago em mim até beleza. Aos poucos, estou recuperando a paz dos meus pais. E saber disso basta para que eu sinta que posso conseguir seguir forte até o fim.
Sei que ainda não ganhei esta luta. Mas percebi hoje que está mais perto do que longe. Eu já não sou motivo para tanto lamento. Eu já não vou ser levada pelo vento.

terça-feira, 3 de março de 2015

liberdade de falar a verdade - dia vinte e três

Eu comecei a escrever aqui porque as palavras são, pra mim, um remédio. E esse remédio me ajudaria a combater o tédio. Criar esse blog foi unir o útil ao agradável. Foi decidir guardar um pouco desse novo contexto em cada um dos meus textos. Eu sabia que essa minha nova rotina pareceria mais leve e menos repetitiva graças à escrita. Eu só não imaginava que esse espaço me faria dar tantos passos.

Antes de ser internada, eu estava acostumada a ser interrogada. Eu olhava os olhos que me rodeavam já não olharem nos meus olhos. Os olhares invasivos se fixavam no meu corpo à procura dos meus motivos. Por isso, fiz do meu sorriso um esconderijo. No pouco espaço do meu corpo, construí a minha zona de conforto, de onde achei que nunca iria sair. Até que criei a coragem de escrever isso aqui. E hoje este blog não é só um remédio de combate ao tédio. Enfim, tenho um lugar onde posso traduzir tudo o que ficou escondido por tanto tempo aqui dentro. Querem exemplos? Agora posso dividir que vivendo eu vi a curiosidade roubar do mundo a sua sensibilidade. E escrevendo eu descobri que não há nada melhor do que ter a liberdade de falar a verdade.

segunda-feira, 2 de março de 2015

esperando sentada - dia vinte e dois

Daqui consigo ouvir a vida lá fora seguindo. E, enquanto ônibus, carros e dias passam, a gente continua neste mesmo quarto. Uma das enfermeiras acaba de se surpreender ao chegar de suas férias e me ver. Nem acredito que você ainda está aqui, ela diz. Eu lamento, mas, nesse momento, tudo o que posso fazer é sorrir. E seguir. E assim é tratar um transtorno alimentar. Não é simples como curar uma gripe. Na verdade, não sei se cura cabe no meu caso. Tudo o que sei é que existe melhora. Existe aprender a lidar com tudo isso. Existe encontrar um equilíbrio. E que o tratamento exige um bom tempo. Às vezes, tudo o que eu quero é cessar a saudade da minha antiga correria de cada dia. É assinar papéis e me autorizar a voltar para a vida. Por alguns segundos que, vez ou outra, acabam se tornando minutos, tudo o que eu quero é estar em casa. Mas quando estes minutos passam, vejo que eu estava errada. Bons são os dias em que eu me deparo com a calma por estar conformada. Dias como hoje, em que eu não quero fugir e correr até chegar em casa. Dias em que tudo o que quero é estar nesta varanda, ouvindo a vida seguindo, sentada, esperando por nada.

domingo, 1 de março de 2015

domingo - dia vinte e um

Posso dizer que esta foi uma boa semana. Afinal, passei a não passar vinte e quatro horas nesta cama. Todos os dias, por vinte e poucos minutos, fico na varanda deste hospital vendo como anda a vida real.
Às vezes, o mundo que cabe neste quarto parece oposto ao mundo que você vive aí fora. Parecem dois planetas independentes, que giram em ritmos diferentes. Mas a exceção desta regra é o dia de domingo. Seja neste hospital ou na vida real, o gosto insosso de tédio misturado com vazio é sentido pelos poucos que não estão dormindo nessa tarde de domingo. Pela varanda, vejo avenidas tão desertas quanto estão os corredores daqui, onde a movimentação de cada dia é hoje substituída pela voz do Faustão. Só por um dia, toda a aflição do mundo parece ser pelos jogos que passam na TV. É um dia de leveza, pelo menos enquanto não se lembram de que o tempo corre em direção à segunda-feira. Pelo visto, o domingo é o mesmo aqui e em qualquer lugar.
Entre o gosto insosso do tédio, se esconde a esperança e o otimismo pela semana que está prestes a começar.

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

eu não estou na vitrine - dia dezenove

Não. Eu não desisti de escrever aqui. A minha ausência foi consequência de dias cheios de visitas, sono, anseios e daquilo que a gente sente quando vê que a nossa vida, de repente, mudou completamente. Mas, apesar de cada dificuldade e da falta de novidade, eu não desisti de escrever aqui.
Sei que posso estar sendo vítima de uma interpretação distorcida. Por isso, digo e, se for preciso, repito: não busco autopromoção ao escrever aqui sobre a minha internação. Não estou me colocando numa vitrine, por onde vocês vão passar, para onde vão olhar enquanto decidem se vão comprar. Não quero me tornar um produto rotulado por este transtorno alimentar. Por isso, torno explícita a minha aversão à exposição. Escrevo porque assim concretizo um compromisso que faço comigo. E, como consequência, passo informação e posso ser fonte de conscientização.
Há algum tempo eu queria criar coragem para escrever sobre a minha maior dificuldade. Eu sabia que traduzir este problema exigia que eu estivesse preparada para assumir um compromisso com as minhas próprias palavras. E eu não tinha certeza de que eu queria sair da minha zona de conforto. Mas então eu soube que seria internada. E, naquele mesmo dia, descobri que a minha coragem estava criada.  Demorou, mas a hora de reaprender a viver chegou. A ficha caiu. E se escrevo esse texto é porque quero deixar registrado o meu compromisso com este desafio.

Que bom é ter a liberdade de falar a verdade.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

nem tudo são flores - dia dezesseis

Eu preciso fazer não sei quantas questões de Matemática. Mas também preciso ler todas aquelas páginas de Gramática. Já escrevi o texto de Redação, mas, em compensação, preciso fazer um resumo sobre colonização. E lembrei que não posso me esquecer de revisar o assunto novo de química, resolver questões de física, estudar mais a evolução vegetal, ler apostilas sobre revolução industrial. Eu sei que eu devo estar nesse hospital. Mas, às vezes, sinto saudade da vida normal. Eu estou perdendo, nesse exato momento, o primeiro mês do meu último ano escolar. E toda manhã eu lamento em silêncio por não poder estar lá.
Hoje a minha preocupação não coube no meu corpo. Ela exigiu mais espaço, por isso se expandiu por todo esse quarto. Desculpa, mundo, mas eu precisava daquele breve momento de fraqueza. Eu precisava traduzir a minha tristeza passageira. Agora meus óculos estão embaçados, mas o meu coração está aliviado. Eu estou conformada em estar aqui, mas sinto falta de tudo o que vi e do que ainda não vivi. Sinto saudade da minha correria sem novidade. E da minha rotina, da minha liberdade. Hoje não foi o melhor dia. Às vezes me vem essa saudade da vida. Desculpa, mundo, mas hoje eu tenho que deixar pra amanhã.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

feliz ano novo - dia quinze

Dizem que o ano só começa depois do carnaval. E, pelo visto, esta regra também se aplica à vida no hospital. Há duas semanas estou aqui. Mas só hoje percebi que os últimos dias em casa e os primeiros dias internada foram vividos num mesmo ritmo. Não se via correria por estes corredores. E não havia rotina que não fosse vivida na frequência de uma lenta contagem regressiva. Tudo e todos estavam à espera da festa. E então a contagem chegou ao zero. A festa começou. E o hospital esvaziou.
Enquanto você aí fora viveu imerso à poluição sonora, eu convivi com a escassez de som. E garanto: nenhum dos extremos é bom. Você respirava o mesmo ar que toda aquela multidão, enquanto, por aqui, foram dias e dias de solidão. Poucos foram os batalhadores que enfrentaram o plantão. Mas depois desse momento em que eu e voce vivemos os extremos do carnaval e do hospital, a festa acabou e tudo voltou ao normal.
Imagino todos aí fora voltando aos trabalhos, à escola. Por aí, imagino que a correria já faça com que não sobre tempo para contagens regressivas. E a segunda-feira deve ter voltado a ser temida.
Por aqui, tudo vai indo. O número de pacientes é crescente, o que tem até me feito um pouco feliz. Desculpa, não escrevo isso por mal. É que agora médicos andam pra lá e pra cá, eu digo e repito que tudo vai bem comigo, recebo de presente visitas e sorrisos, enquanto pacientes, visitantes e acompanhantes choram, sorriem e se abraçam, e crianças passam e espalham brinquedos e leveza, expulsando desse lugar toda sua frieza. E muitos são os enfermeiros que enfrentam o plantão. Com toda essa movimentação, onde sobraria espaço para monotonia e solidão?
O carnaval passou. Agora o ano começou. Feliz ano novo.

sábado, 21 de fevereiro de 2015

respostas para quem vê de fora - dia treze

Eu imagino você imaginando que tudo aconteceu de repente, como se um dia eu simplesmente tivesse acordado doente. E eu entendo você. Como um edifício é construído, um transtorno alimentar é desenvolvido de modo gradativo e cansativo. Mas quem vê de fora, só vê o fim da obra.
O fato é que o início de tudo isso foi a soma entre cobranças e mudanças. E esse complexo cálculo matemático resultou nos primeiros motivos e indícios. Respondendo ao preconceito dos leigos: eu não quis ser modelo. Eu não subordinei a minha cabeça à ditadura da magreza, nem sequer quis caber em padrões de beleza. O fato é que, por um segundo, eu quis carregar sozinha todo o peso desse mundo.  Eu quis esquecer o passado, entender o presente e saber do futuro. Toda a minha preocupação sem explicação fez com que eu quisesse controlar o tempo e guardá-lo em minha mão. Mas tudo o que estava ao meu alcance era o controle da televisão. E da minha alimentação.
Inconscientemente, eu desliguei a TV. Substituí lazeres por deveres. Perdi quilos e amigos. Sem entender o que estava acontecendo e assustada diante da rapidez com que eu estava emagrecendo, procurei por explicações e informações. Comecei a buscar os motivos para o vazio que passou a conviver comigo. Assisti a vários programas a procura de respostas. Quando o assunto são distúrbios alimentares, sou vítima e especialista. Então, através de todas as minhas pesquisas repetitivas, cheguei a um autodiagnóstico. De modo inconsciente, gradativo e cansativo, eu desenvolvi um transtorno alimentar restritivo. A preocupação ou o preconceito podem te fazer pensar que eu vomito ou não paro de fazer exercício físico. Mas nada disso chegou a estar entre meus sintomas. Simples e infelizmente, eu desaprendi a comer pra viver. Eu desaprendi a comer. E a viver. Por isso, escrevo esse texto pra você: para pedir que você percorra outro caminho, ou este quarto de hospital também vai acabar sendo o seu destino.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

o que aprendi hoje - dia doze

Eu não estou sozinha. E, dessa vez, não afirmo isso me referindo ao meu diagnóstico, ao meu quadro. Estou me referindo aos que, de fato, estão do meu lado. Nesse momento, sinto muito sono. Mas não podia ir dormir sem deixar registrado aqui o que hoje eu aprendi: os dias difíceis servem para que a gente possa ver quem realmente está com a gente. E eu acabo de dar tchau aos meus melhores amigos, que passaram a tarde aqui comigo. Então, me digam: de que mais preciso? Eu acabei de descobrir que tenho para quem dar a mão e com quem seguir. E que bom é ter quem venha até um hospital só para me trazer de presente bons motivos para sorrir.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

passos à frente - dia onze

Nos primeiros dias de internação, este quarto tinha a frieza de uma prisão. A sonda e o soro que me mantinham parada e deslocada eram algemas disfarçadas. Mas eu não pensei em fugir. Eu já tinha entendido que estar aqui seria melhor pra mim. Só o que faltava era me sentir acostumada à ideia de passar dias inteiros deitada. Mas a gente sabe que costume nunca chega no primeiro momento. Sempre se atrasa e só vem depois de um bom tempo. A novidade é que acabo de ser solta do soro, a minha principal algema, que fazia substâncias e dores correrem pelas minhas veias. Meu corpo acaba de reconquistar um pouco de autonomia. E eu não sabia que não estar deitada seria motivo para tanto alivio e alegria. Eu escrevo esse texto sentada. E cada uma dessas palavras já pode ser gesticulada. Ir até a varanda ou à pia já não parece um sonho irrealizável.
Hoje foi dia de dar passos à frente. Literalmente. 
Acho que as coisas estão ensaiando para melhorar. E eu sei que logo o ensaio vai ter que acabar para que o espetáculo possa começar. 

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

turismo hospitalar - dia dez

Eu não estou sozinha. E não afirmo isso com um olhar restrito ao espaço físico deste quarto. Estou me referindo ao meu quadro. Não desista de entender caso não tenha ficado muito claro: estou a caminho dos fatos. Querendo economizar toda a minha pouca energia, os médicos determinaram que devo ficar em repouso o dia todo, todo dia. Mas essa regra teve seus instantes de exceção. Ontem, pela primeira vez em pouco mais de uma semana, estive por longos cinco minutos longe desta cama. No meu primeiro turismo hospitalar, eu e a minha mãe caminhamos até o início daquele corredor que parece infinito, onde nossa lentidão era toda a movimentação. E entre todas essas portas iguais que escondem conversas diferentes, me deparei com aquela menina. A gente não disse uma palavra. Não precisava. Logo vimos que, se viemos parar aqui, foi por um mesmo motivo. Então trocamos um sorriso. Nossos olhos se olhavam denunciando nossa empatia. E entre nossos sorrisos contidos, eu pude ouvir o que a gente dizia: eu não estou sozinha.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

novos universos - dia nove

Por aqui, cada dia cria a mania de imitar o anterior. Os dias não têm tido personalidade, o que explica a minha falta de novidade. Com exceção do cobertor, tudo se mantém inalterado: o calor, o cenário, o meu humor, o cardápio, os horários. São sempre as mesmas perguntas antecedendo os mesmos remédios. E, sinceramente, nada disso tem sido assim tão ruim. Mas não tenho dúvidas de que os momentos com as pessoas estão entre as melhores coisas daqui. Cada enfermeira ou médico com quem converso me mostra um pouco de um novo universo. Sinto como se eu estivesse conhecendo o mundo sem que seja necessário sair desse quarto.
Por aqui, os dias se imitam. Mas as esperanças não se limitam.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

uma semana - dia oito

Faz uma semana que os meus dias são vividos nessa cama. E o fato é que eu acho que o tempo tem passado rápido. Cheguei aqui achando que eu passaria dias implorando para que os dias passassem. Achei que aqui, nos bastidores, cada sorriso seria esconderijo de dores. Foram muitos os motivos para achismos negativos. Eu não me sentia preparada para ser desafiada. Mas então o dia de hoje começou e o café da manhã chegou como uma prova de que eu estava enganada.

domingo, 15 de fevereiro de 2015

nem tudo são dores - dia sete

Ontem eu tive um bom dia: estudei inglês e biologia. Mas a minha alegria não surgiu a partir da evolução vegetal ou do possessive pronoun. A alegria veio por eu ter visto que a construção de uma nova rotina nesse hospital, embora pareça difícil, é uma missão possível. Eu sei que ainda vou sentir muita saudade da vida lá fora, da sala de aula e de casa. Mas, por enquanto, o meu cotidiano vai ter este quarto como cenário. E não posso fazer nada a não ser me conformar sem me acomodar. Agora é levantar e lutar.
Ontem o dia foi bom. A noite, no entanto, nem tanto. Dos últimos minutos do horário de visita até o fim do dia, estive muito ocupada dando atenção a esta febre, que ainda me faz companhia. Eu tenho agora um pouco de medo guardado, muito sangue coletado e, claro: uma porcentagem considerável de otimismo graças aos que caminham comigo. Meu corpo cansado se esforça para acompanhar o meu coração acelerado. Mas, me diz, de que posso reclamar? Aqui estão meus pais me trazendo paz. E, além de todo apoio da família, eis que tive a sorte de me deparar com a minha atual nutricionista, em quem posso encontrar a mesma calma que guardo na minha alma. Michelle, que não sei se lê esse texto e se seu nome é escrito com dois L, mas que, sem sequer saber, é hoje alguém que me fortalece e me incentiva a voltar à vida pelo simples fato de ter optado por estar do meu lado nesta batalha.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

dos baixos à minha alta - dia cinco

Esse é o quinto dia de internação. E o número cinco não é nem metade do estabelecido como previsão. Daqui até o fim, ainda vou receber muita visita do desespero por estar perdendo os primeiros meses do terceiro ano do ensino médio ou por tudo o que é incerto. Sinto que as dificuldades crescem de modo gradativo. A parte boa de tudo isso é que o tal do otimismo tem insistido em caminhar comigo. Não minto: o início tem sido difícil. Mas eu sei que entre minhas curtas conversas com médicos e nutricionistas estão contidas boas notícias. Eu acredito que uma hora a minha rotina vá se moldar pra caber neste lugar, que tende a se tornar cada dia mais familiar.
Dos baixos a minha alta, eu vou ficando íntima do tédio. E aprendo um pouco mais sobre coragem, saudade e afeto.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

onde eu deveria estar - dia quatro

Presa neste quarto de hospital, meu conhecimento geral está cansado dos preparativos (ou do início?) do carnaval. Eu sinto falta de saber sobre a que ritmo tem ido a vida real. Imagino os carros ainda congestionados nas grandes avenidas, acalmando (ou atrasando) a correria comum entre diferentes rotinas. Penso na praça em que eu mais gostava de andar de patins, onde sei que muitos caem e levantam exatamente agora. Onde eu costumava esquecer para que servem as horas. A praça onde estive pouco antes de vir parar aqui, sem sequer saber que eu estava ali pra me despedir. Eu tenho lido e visto o jornal, e sinto como se tudo lá fora estivesse normal. Pelo visto, esse período de mudanças repentinas se limitou a minha vida. Eu convivo há quatro dias com o dobro de novidades e dificuldades. Num só quarto, guardo tédio com pensamentos no terceiro ano do ensino médio, juntos ao receio, ao cansaço, ao anseio. E à paciência de digitar todo esse texto só com a mão esquerda, já que a dor do soro é crescente na direita. Mas, apesar de qualquer dificuldade, sinto que eu não deveria estar em outro lugar. É bom estar aqui batalhando, sangrando, reaprendendo a caminhar.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

a famosa doença da moda - dia três

O carnaval acaba de começar. E nesse ano, veio invadindo tudo o que é lugar. Dá até pra escolher de qual participar: do carnaval das avenidas ou deste que se passa na minha vida. Mas vou logo avisando: ambos estão agitados, desorganizados, lotados. Os refrões vazios que lotam ruas são tåo cansativos e repetitivos quanto os procedimentos hospitalares. E os versos nada poéticos que agridem a avenida rimam com as especulações que já fazem parte da minha rotina. No primeiro dia de internação, estava eu ali, sentada, desesperada, parada, a ficha já caída, eu ainda não conformada, quando percebi que mais um jaleco branco se aproximava. Nos útimos dias, desenvolvi uma teoria (ou talvez um preconceito chamado de outro jeito pra parecer menos feio): a qualidade de um médico é denunciada pela sua abordagem. E aquele jaleco branco me abordou como fazem os meus parentes distantes, vizinhos, conhecidos, com as mesmas perguntas leigas feitas sem a menor sensibilidade. Não, eu não desenvolvi um distúrbio alimentar restritivo por  moda, por sonhar em ser modelo, por motivos desse tipo, baseados em vaidade. Sempre me senti feliz por ser alheia a esse tipo de futilidade. No entanto, aconteceu. E aqui estou eu, presa a esta magreza graças à famosa doença da moda. Aconteceu. Como um tumor acontece. Um tumor resulta de uma falha na atividade celular, enquanto uma soma de falhas psicológicas impulsionam um distúrbio alimentar. Ambos são doenças que ninguém escolheria ter, mas que podem simplesmente acontecer. E agora? O que fazer? É reaprender a viver. É lutar contra este carnaval agitado, desorganizado, lotado que há algum tempo eu guardo.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

procedimentos e compadecimentos - dia dois

É muita interrogação para tão pouco tempo de internação. É muita gente, muitas novidades e procedimentos, precauções, preocupações, compadecimentos. Imagino que toda essa pluralidade deva parecer confusa para quem está aí fora, na vida, longe dos bastidores desse espetáculo um tanto dramático, mas adequado para o meu estado, então venho revelar um pouco do que se passa por trás das cortinas. É muita gente. Gente diferente com discurso igual. Gente que diz pode contar comigo através de um sorriso. Gente agindo como se tudo isso foi muito normal. Gente fazendo com que a gente perceba que estar aqui não é legal, mas também não é assim tão mau. A equipe de salvadores é grande, bem como a quantidade de perguntas idênticas que cada um deles faz a mim. Por enquanto, elas têm sido respondidas com facilidade. Difícil vai ser lembrar o nome dos que as fazem. É muita gente.
Minhas curiosidades e impressões se expandem a cada novo procedimento, colonizando a terra das minhas incertezas. Pergunto qual o conteúdo de cada seringa, como se a resposta, composta por palavras da medicina, pudesse ser entendida (saudades do meu professor de química). Às vezes, demoramos a engolir certas novidades. Tem coisas que não nos desce a garganta. E esse já não é o caso da sonda que transporta até o meu estômago um líquido proteico, cor de café com leite. O incômodo em relação a isso é agora quase desprezível. E eu acredito que a palavra quase tende a sumir da última frase. Tenho plena consciência de que o liquido café com leite é um dos principais responsáveis pelas mudanças que vão acontecer no meu corpo ao longo do tratamento. E, ainda assim, não estou deixando que a minha mente doente o considere um inimigo. Se o objetivo é reencontrar a vida e viver em equilíbrio, ele é que seja bem-vindo. 

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

o primeiro hoje - dia um

Só hoje posso perceber quanto hoje foi deixado pra amanhã. Minha mente doente sempre acabava me fazendo acreditar que todos os ontens que um dia foram dias de hoje fariam melhor na manhã de amanhã. Muito tempo foi desperdiçado. E não há desperdício que não traga consigo algum mau resultado. Os exemplos disso estão no Jornal Nacional e neste quarto de hospital: a água está escassa. E eu acabo de ser internada.
Na manhã de hoje, eu perderia um dia de aula e, em compensação, ganharia mais uma consulta para a minha coleção. Aquela seria mais uma conversa com mais um médico sobre esse transtorno alimentar, causado sobretudo pela minha insegurança sem explicação e causador da minha incapacidade de dizer não à restrição. Aquela seria mais  uma conversa sobre metas numéricas, exatamente igual às outras tentativas de salvação, se os meus salvadores de hoje não tivessem concluído que, para o meu estado debilitado, a internação é a única opção. Não preciso de longas frases e orações para descrever o momento da sentença final. Afinal, não se pode dizer mais nada depois que a ficha cai. A palavra desespero descreve as horas seguintes à queda da bomba. Agora é substituir o desespero pela esperança de me reconstruir. Hoje foi o primeiro dia de hoje, entre tantos hojes adiados, desperdiçados, deixados pra amanhãs.
Mais cedo, tirei um raio X para que os médicos pudessem ter a certeza de que a sonda que agora congestiona a minha garganta está indo a caminho do meu estômago. Pra calar o silêncio, o técnico responsável pelo raio X fez a pergunta cuja resposta já estava explícita  nas minhas lágrimas contidas: tudo bem?, ao que eu respondi "tudo indo". Tudo lindo?, ele perguntou, surpreso, assustado. Enganado.
Eu estou surpresa, assustada. Mas cansada de me enganar. Então, vou fazer o que posso: lutar. Sorrindo, porque ainda é possível. Escrevendo esse diário sobre um tempo que vai ser difícil. Aliviada por saber que esta é uma batalha vencível. Agradecendo e dizendo a você que lê isso: seja bem-vindo. Nada por aqui está tão lindo, mas vamos seguindo.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

hoje não vou deixar pra amanhã

Não se pode começar uma história sem começo. O começo é necessário. É preciso. Mas como começar quando o começo é impreciso (e, pra piorar, indeciso)? Essa história é menos poética que matemática. O começo dessa história é como um cálculo interminável. Mas não se trata de um começo exato - embora seja um começo de exatas. Não se trata de uma mera fração. Não estamos falando de uma história simples como uma subtração, compreensível como uma adição, decifrável como o delta de uma equação. Essa história mais parece uma inequação. Um complexo cálculo matemático. Uma soma entre infinitos fatos fragmentados multiplicados por dias nublados.  

Existe consequência que não obedeça a uma sequência?

Posso me ver sorrindo meiga e desajeitadamente, cabelos sempre enfeitados e bem penteados, graças à “melhor mãe que eu tenho no mundo”, como eu sempre a chamava, como se eu tivesse outras mães no mundo. E como se fosse necessário ter outras mães no mundo para saber que aquela era a melhor mãe que o mundo podia ter inventado - e me dado. Tímida, a minha versão anos mais nova hoje me informa sua idade através de poucos dedos levantados, pequena o suficiente para caber em colos e nestes porta-retratos. Estamos agora a pouco mais de uma década de distancia, mas eu ainda a conheço muito bem. Sei que aquela versão de mim diria à sua (ou minha) mãe “Já? Passou rápido, né, mãe? “ se eu lhe dissesse que hoje estou com dezessete. A minha versão mais nova amava livros - sobretudo os de "capa dura" -, gostava de doce e das meninas super-poderosas. E quase sempre sua resposta pra quase toda pergunta era “por mim, tudo bem”. Porque tudo quase sempre ia muito bem. Ela era meio desastrada. Não é à toa que esqueceu em mim a sua alma. Por isso, temos em comum o sorriso, a calma. Os antigos segredos e medos. O que mudou é que agora temos diferentes idades, alturas, ideias, pensamentos. E por mim, tudo bem. O problema é que hoje devo ter o mesmo peso daquela criança que fui. Hoje sou sua versão mais velha, mas não sou sua versão mais saudável, mais forte, mais ativa, mais viva. As mudanças da pré-adolescência acabaram dando de cara com a tal da insegurança pré-adolescente, e as duas juntas receberam visitas insistentes de comentários insensíveis disfarçados em brincadeiras inofensivas.  Tudo isso e mais certa dose de instabilidade familiar foi a receita perfeita para este insosso transtorno alimentar. Tudo quase sempre ia muito bem. Mas o quase dessa frase foi ganhando muita importância naquela fase. E, quando fui me ver no espelho, já não consegui me encontrar: estava escondida sob a anorexia. Eu desaprendi a socializar sem me preocupar com o quanto vou almoçar ou o que vou lanchar ou a que horas vou jantar. Não lembro a última vez em que coube em roupas para meninas da minha idade. Hoje eu convivo com as interrogações menos preocupadas do que curiosas sobre o porquê de eu estar assim. Deixo que me machuquem, que me invadam. Deixo que as interrogações aluguem o meu pensamento. Hoje uma multidão já faz da minha mente moradia. Por que estou assim? Eu também queria essa resposta. Mas não sou a vítima dessa história. Sempre penso que poderia ter sido mais forte. Mas o fato é que anorexia, diferente do que se diz, nunca é motivada por futilidade ou vaidade. Anorexia não é escolha. É uma doença, e, como tal, chega sem bater na porta. Chega, entra e tranca a porta, enquanto a nossa saúde e liberdade ficam esquecidas do lado de fora.
Já não sei o que é viver livre. Mas quero muito saber se isso ainda existe. Quero ser saudável, forte, ativa, viva. 
Cansei de ter medo de batalhar. Cansei de ver a minha liberdade pelo olho mágico da porta.
Cansada de não batalhar, quero batalhar até cansar.

E, pela minha família, pela minha vida, por tudo o que vi, deixei de ver e ainda vou viver, hoje não vou deixar pra amanhã.