Andava pela casa.
Perambulava à procura de nada. Ou talvez estivesse ocupada, ocupadíssima, com a
inadiável missão de buscar um copo de água. Parecia não só concentrada, mas
preocupada, talvez pensando na enorme lista de coisas que tinha pra fazer até o
fim daquele dia. Como se aquela lista não estivesse vazia. Foi quando, no
corredor, a poucos passos do meu quarto, minha inexplicável expressão de
concentração se desfez inusitada, inesperada, abruptamente, diante do susto ao
ver aquele pequeno ser que, de repente, surgiu em minha frente.
Em pé, de braços abertos,
suas duas pequenas mãos tocavam firmemente as paredes do corredor, impedindo
que eu desse sequer um passo a frente. Ele tem a metade da minha idade e quase
a minha altura (não, a altura dele não está avançada. Acho que a minha é que tá
atrasada). Logo, o respeito que a minha idade poderia impor é retirado pela
minha altura, que nos iguala. Aproveitando-se da nossa igualdade – ou melhor,
da minha falta de superioridade -, meu primo Felipe tinha uma solicitação a que
eu era obrigada a atender caso quisesse ser permitida a seguir o trajeto rumo
ao meu quarto: “Inha, escolhe alguma coisa pra eu construir no Minecraft!”
Despreparada como quem é
abordada na blitz pela primeira vez e ultrapassada como quem começa frases
dizendo “na minha época”, fiz uma pergunta da qual não me orgulho nem um pouco:
“como é isso de Minecraft?” Não satisfeita, continuei: “como assim construir
alguma coisa? Alguma coisa de que tipo?”
Na minha época, não sei se
as crianças eram assim tão pacientes com gente ultrapassada como, naquele
momento, Lipe foi comigo. Prontamente ignorou as minhas perguntas dignas de
vergonha e explicou, mais paciente do que imaginei que poderia ser, o que seria
Minecraft e que tipo de coisa construiria. E então retomou o pedido: “Vai!
Escolhe qualquer coisa que eu construo!”.
Senti que seria
dolorosamente frustrante responder algo tão simples como uma casa, tão
irrelevante quanto um objeto, tão clichê quanto um carro. Precisava
corresponder à expectativa que elevava sua doce voz infantil e fazia crescer
seus olhos puros e ansiosos. “Já sei! Um clube!” “Com gente ou sem gente
dentro?”, ele respondeu com a mesma expectativa e ansiedade, nem um pouco
apreensivo com o desafio, talvez ainda mais agitado. “Com gente, claro!”.
Foi nesse exato momento que
a animação dos seus olhos sofreu uma inusitada queda, assim como sua voz, agora
desanimada: “Com gente? Tem certeza? É que, com gente, tenho que colocar um
monte de aldeão. E eles ficam olhando o tempo todo. E fazem um barulho muito
chato. Com gente, é bem mais difícil.” Ênfase no bem.
Como qualquer um que começa
uma frase com “na minha época”, eu não imaginava o que o monte de aldeão
ficaria olhando o tempo todo ou como seria o barulho que o monte de aldeão
faria. Até porque eu nem sabia o que seria um monte de aldeão. Mas não pude
ignorar a expressão de preocupação que surgiu em seu rosto: “Então deixa pra
lá. Faz uma casa. Ou um objeto. Ou um carro.”
Aprendi como era isso de
Minecraft, que tipo de coisa se constrói no Minecraft, o que o aldeão olha o
tempo todo, qual o barulho muito chato que o aldeão faria e até o que seria um
aldeão. Mal sabia eu que ainda aprenderia mais uma coisa, talvez a melhor coisa
de todas essas coisas, certamente a mais profunda de todas elas. Uma coisa que
muito se ouve, da infância à vida adulta. E pouco se faz. Pelo menos na vida
adulta. “Eu falei que fazer um clube com gente seria
difícil. Mas não é porque é difícil que eu não vou fazer.”
Sábios são esses seres,
miúdos em estatura, mas gigantes de alma. Esses seres que têm o poder de
guardar, em corpos tão pequenos, uma imaginação infinita. Além do talento raro
de diferenciar as palavras difícil e impossível.
Felipe tem metade da minha
idade, quase a minha altura e o dobro da minha sabedoria.
Fim de papo. Eu já estava
permitida a ir pro meu quarto. Ele foi construir o clube. Com gente.