“Talvez esse tema, comida,
seja o tema mais...”, então suas mãos, que gesticulavam, de repente pausaram, como
se cedessem toda a agitação ao cérebro, que precisava trabalhar rapidamente
para eleger o tema “comida” ao título certo, ao posto mais adequado. Sentados
ao seu lado, seus amigos – ou meros conhecidos - se mantinham calados, tensos
como quem assiste à votação do impeachment, atentos àquela eleição cujo
resultado mudaria suas vidas (ao menos era o que parecia), com olhos
estacionados e ouvidos apurados, talvez ansiosos, ou impacientes, ou
apreensivos. Ou indecisos. Ou tudo isso. Quando,
meu Deus, chegaria ao fim essa eleição? Quantos deputados ainda diriam sim e
quantos ainda diriam não? Penso que
era o que eles pensavam enquanto esperavam o fim da importante eleição sobre a
comida ser o tema mais... “Mais legal do mundo!”, enfim completou Fábio
Porchat, dando o resultado de sua própria eleição após a eternidade daquele um
segundo, num vídeo em que passaria os próximos vinte minutos falando sobre o
tema recém eleito o mais legal do mundo.
O resultado foi visivelmente
bem recebido. Seus três amigos – ou conhecidos – já não estavam mudos antes
mesmo de Porchat chegar ao fim da palavra “mundo”: os três se divertiram com o
resultado. Um deles fez uma piada. Todos riram. Não pela piada. Pela graça do
resultado. E, provavelmente, por terem o aprovado. O índice de aprovação
daquela eleição era uma unanimidade, diriam os jornais globais. Os jornais
ditos mais bem elaborados. E, claro: mais manipulados.
Aquele resultado provavelmente
era uma unanimidade. Mas uma unanimidade entre Porchat, seus amigos (ou
conhecidos) e você que talvez concorde com eles, ou entre os amigos dos amigos
de Porchat que talvez concordem com eles, ou entre os conhecidos dos conhecidos
de Porchat, ou entre os conhecidos daqueles que eram amigos de Porchat. Os
jornais poderiam dizer que aquela era uma opinião unânime. Mas, na verdade,
aquela era uma unanimidade não unânime. Não é preciso ser um sábio para saber
que aquela era uma unanimidade restrita: bastaria ser alguém que teve anorexia.
Talvez esse tema, comida, seja
o tema mais... Mais ilegal do mundo. Pelo menos quando passamos a viver sob a
ditadura de um transtorno alimentar. A primeira lei que somos,
inconscientemente, obrigados a seguir é nunca, jamais, em hipótese alguma,
interagir de maneira que faça sentido em conversas sobre comida.
Exemplos não faltam: “Mas você
já comeu o bolo de Brownie com Morango da Doces Sonhos?” “Amo! Mas ainda
prefiro a torta de Floresta Negra da Perini.” “Sim! Gosto. E você, Indra?
Prefere qual?” “Ah, gente, não sei. Mas vocês já viram aquele que foi lançado
hoje?” “O que?” “O vídeo novo do Porta dos Fundos. Amei.”
E assim agimos sucessivas
vezes, escolhendo sempre qualquer resposta entre aquelas que a censura permite,
ou seja, qualquer resposta que envolva qualquer tipo de coisa, menos qualquer
coisa que tenha caloria. Tipo toda e qualquer comida. Podemos falar sobre o
vídeo novo do Porta dos Fundos, sobre o livro novo de Tati Bernardi, sobre a
música nova de Zimbra, até que deixe de haver ao nosso redor algo de novo. E aí
a gente tem que se esforçar para procurar novas saídas que, como as antigas,
não façam o menor sentido. De novo. Temendo a censura. De novo. Fingindo que
vai fazer sentido. De novo. Cansada de como tudo isso é cansativo e repetitivo
(de novo).
Não sei se aqueles que estavam
ao seu lado eram seus amigos íntimos ou meros conhecidos, mas o fato é que
Fabio Porchat estava no sofá de sua casa, de pernas cruzadas, os pés descalços,
livre não só dos sapatos, mas do peso de uma ditadura, dos muros de uma
censura. Exatamente como estou nesse exato momento: sem sapatilha, sem ditadura,
sem censura. Sem anorexia. Livre pra falar com amigos íntimos
ou meros conhecidos sobre Porta dos Fundos, Tati Bernardi, Zimbra. Ou comida.
Aliás, acabei de comer um
sequilho de coco. Uma delícia.