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sábado, 7 de março de 2015

meus pais - dia vinte e sete

Um transtorno alimentar faz uma única vítima, o que não significa que a vítima seja a única pessoa atingida. O convívio íntimo com a doença me faz, todos os dias, confirmar essa certeza. As marcas desse crime não estão só em mim. Também podem ser vistas nos olhos preocupados dos que estão ao meu lado. A contradição é que estes são injustamente julgados como culpados. Coitados.
Seja qual for o motivo, se algo dá errado com um filho, a culpa recai sobre seus pais. Os sabedores de tudo lhes tiram a paz, apontando seus erros, ignorando seus acertos. E estranho seria se fosse diferente. Afinal, os sabedores de tudo adoram opinar sobre o final de um espetáculo. Mas não querem saber o que acontece nos bastidores. Os sabedores de tudo não sabem as nossas dores.
Os meus pais fizeram o que puderam por mim. A cada dia, a cada refeição, eles lutaram pela minha salvação. Por mais de uma vez, o meu pai deixou para trás o sono, o almoço, o ânimo e o lazer. Nenhuma importância tinha o UFC que, naquela noite, passava na TV. O que ele fez foi, mais uma vez, me ouvir, tentar me entender. A minha mãe me deu suas mãos, sua companhia. Minha mãe me deu toda a sua vida na tentativa de salvar a minha. Em seus olhos eu via: a minha saúde e a minha alegria era tudo o que ela queria. A minha mãe perdeu noites por mim. E se hoje escrevo esse texto nesse hospital é porque eu, ainda assim, não consegui.
A parte boa dessa historia é que agora estou aqui, com a ficha caída, levantando da minha queda graças à força que os meus pais me deram com tanto afeto. Em breve eu vou estar de pé para lhes agradecer através dos nossos abraços, onde todo o amor que sinto se mantém guardado. 

quinta-feira, 5 de março de 2015

olha só pra mim - dia vinte e cinco

Eu estou me sentindo diferente. E, agora, o que sinto já não parece distorcido. Pela primeira vez em não sei quanto tempo, o modo como me sinto condiz com o que realmente sou nesse momento. Eu não me sinto diferente. Eu estou diferente. A foto que a minha mãe acaba de tirar é a prova disso. Olha só pra mim, eu digo para mim mesma em pensamento.
Eu me excluí por um bom tempo. Eu desapareci. O cansaço nos meus olhos e aqueles ossos expostos foram tudo o que sobrou de mim. Eu fui embora. Mas, agora, sinto que estou à caminho de ser quem eu era. Eu demorei. E ainda não cheguei. Mas continuo na estrada, me sentindo pronta pra essa longa batalha. Eu estou trazendo comigo o meu antigo sorriso. Eu estou aprendendo a dar à minha consciência um pouco mais de leveza. Olha só pra mim, eu digo para mim mesma. Aos olhos da minha mãe, eu trago em mim até beleza. Aos poucos, estou recuperando a paz dos meus pais. E saber disso basta para que eu sinta que posso conseguir seguir forte até o fim.
Sei que ainda não ganhei esta luta. Mas percebi hoje que está mais perto do que longe. Eu já não sou motivo para tanto lamento. Eu já não vou ser levada pelo vento.

terça-feira, 3 de março de 2015

liberdade de falar a verdade - dia vinte e três

Eu comecei a escrever aqui porque as palavras são, pra mim, um remédio. E esse remédio me ajudaria a combater o tédio. Criar esse blog foi unir o útil ao agradável. Foi decidir guardar um pouco desse novo contexto em cada um dos meus textos. Eu sabia que essa minha nova rotina pareceria mais leve e menos repetitiva graças à escrita. Eu só não imaginava que esse espaço me faria dar tantos passos.

Antes de ser internada, eu estava acostumada a ser interrogada. Eu olhava os olhos que me rodeavam já não olharem nos meus olhos. Os olhares invasivos se fixavam no meu corpo à procura dos meus motivos. Por isso, fiz do meu sorriso um esconderijo. No pouco espaço do meu corpo, construí a minha zona de conforto, de onde achei que nunca iria sair. Até que criei a coragem de escrever isso aqui. E hoje este blog não é só um remédio de combate ao tédio. Enfim, tenho um lugar onde posso traduzir tudo o que ficou escondido por tanto tempo aqui dentro. Querem exemplos? Agora posso dividir que vivendo eu vi a curiosidade roubar do mundo a sua sensibilidade. E escrevendo eu descobri que não há nada melhor do que ter a liberdade de falar a verdade.

segunda-feira, 2 de março de 2015

esperando sentada - dia vinte e dois

Daqui consigo ouvir a vida lá fora seguindo. E, enquanto ônibus, carros e dias passam, a gente continua neste mesmo quarto. Uma das enfermeiras acaba de se surpreender ao chegar de suas férias e me ver. Nem acredito que você ainda está aqui, ela diz. Eu lamento, mas, nesse momento, tudo o que posso fazer é sorrir. E seguir. E assim é tratar um transtorno alimentar. Não é simples como curar uma gripe. Na verdade, não sei se cura cabe no meu caso. Tudo o que sei é que existe melhora. Existe aprender a lidar com tudo isso. Existe encontrar um equilíbrio. E que o tratamento exige um bom tempo. Às vezes, tudo o que eu quero é cessar a saudade da minha antiga correria de cada dia. É assinar papéis e me autorizar a voltar para a vida. Por alguns segundos que, vez ou outra, acabam se tornando minutos, tudo o que eu quero é estar em casa. Mas quando estes minutos passam, vejo que eu estava errada. Bons são os dias em que eu me deparo com a calma por estar conformada. Dias como hoje, em que eu não quero fugir e correr até chegar em casa. Dias em que tudo o que quero é estar nesta varanda, ouvindo a vida seguindo, sentada, esperando por nada.

domingo, 1 de março de 2015

domingo - dia vinte e um

Posso dizer que esta foi uma boa semana. Afinal, passei a não passar vinte e quatro horas nesta cama. Todos os dias, por vinte e poucos minutos, fico na varanda deste hospital vendo como anda a vida real.
Às vezes, o mundo que cabe neste quarto parece oposto ao mundo que você vive aí fora. Parecem dois planetas independentes, que giram em ritmos diferentes. Mas a exceção desta regra é o dia de domingo. Seja neste hospital ou na vida real, o gosto insosso de tédio misturado com vazio é sentido pelos poucos que não estão dormindo nessa tarde de domingo. Pela varanda, vejo avenidas tão desertas quanto estão os corredores daqui, onde a movimentação de cada dia é hoje substituída pela voz do Faustão. Só por um dia, toda a aflição do mundo parece ser pelos jogos que passam na TV. É um dia de leveza, pelo menos enquanto não se lembram de que o tempo corre em direção à segunda-feira. Pelo visto, o domingo é o mesmo aqui e em qualquer lugar.
Entre o gosto insosso do tédio, se esconde a esperança e o otimismo pela semana que está prestes a começar.