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sexta-feira, 15 de julho de 2016

papel desgastado

Querida Indra-do-futuro,

Eu sei; nesse momento, você deve estar muito ocupada. Só não sei exatamente com o quê. Isso depende de quando é o dia de hoje aí no futuro. Se o hoje daí for no ano de dois mil e vinte, sei bem o que está acontecendo: você está nos últimos semestres da faculdade de Letras. Ao seu lado, uma pilha de apostila espera pra ser lida, mas você tenta fingir que não a vê: está envolvida numa longa faxina à procura de uma apostila tão antiga quanto esse seu vestido verde e essa sua estante de livros. Em meio a espirros e suspiros, a livros e artigos, está você, ignorando a alergia, o começo do fim do dia e, claro, a pilha de apostila, perdendo não só o tempo, a paciência e o juízo que te restava, mas também a esperança de encontrar o que te levou àquela estante lotada de passado empoeirado. Até que encontra um papel dobrado, amarelado, desgastado pelo tempo, desiludido da própria utilidade e conformado de que em pouco tempo vai ter um saco de lixo como nova moradia. É quando seu coração acelera sem pretensão de frear, tendo como combustível litros de ansiedade e alívio. Enfim encontrei a apostila, você pensa. Foi quando, ao abrir o papel desgastado, você encontra essa carta escrita por mim, sua versão do passado – ou do presente, no meu caso -. Um freio brusco no batimento cardíaco antes acelerado. Um caminhão com toneladas de frustração choca no seu fundo. Você pensa: acabou-se o mundo.

Pensei em me desculpar por representar tamanha decepção. Por não ser a apostila que você tanto sonhava. Por ser só uma carta antiga e – talvez você pense – mal escrita. Por te fazer acreditar que uma mera batida no fundo resulta no fim do mundo. Mas decidi não o fazer, Indra-do-futuro. Por dois motivos. O primeiro é que hoje, quinze de julho de dois mil e dezesseis, li um texto de Audre Lorde do qual eu preciso te lembrar. Conheço bem sua (nossa) má memória. O segundo motivo é que se você já chegou até o segundo parágrafo desse texto, é porque não está assim tão decepcionada e desinteressada diante dessa carta. Assim como não está assim tão interessada nessa tal apostila antiga.

“Ao tomar forçadamente consciência da minha própria mortalidade, (...) do que mais me arrependi foi de meus silêncios. O que me dava tanto medo?” questiona Lorde, fazendo com que eu me questione e queira te questionar: o que me dava tanto medo, Indra-do-futuro? O que me dava tanto medo? Talvez eu esteja te superestimando, mas o fato é que acredito que você tenha lido muito ao longo desses anos. Não só lido, mas também vivido. Lido e vivido a ponto de, quem sabe, ter conseguido encontrar, em alguma linha ou esquina, certas respostas. Sei exatamente a imagem que foi projetada em sua mente ao ler essa frase. Não é coincidência que, na tela da minha mente, essa mesma imagem tenha sido exibida (talvez um pouco mais nítida). Sei que você também se viu pálida, magra, abatida, apática. E calada. Você se viu adolescente, doente. Você já era apaixonada pelo poder das palavras. Mas, insegura como era, temia usá-lo. Preferia deixar essa tarefa pra Gregorio, seu ídolo supremo desde dois mil e já não lembro quando. As palavras dele eram lidas, relidas, admiradas, decoradas. Mas suas (nossas) palavras, coitadas, estavam prestes a morrer asfixiadas. Quando imploravam para sair, eram algemadas. Tentavam fugir, achar uma brecha na grade trancada, gritavam, esperneavam, mas eram ignoradas. Tratadas como crianças malcriadas, quando não passavam de recém-nascidas implorando pela vida. A tirania do silêncio, como define Lorde, te calou até o minuto anterior ao último minuto.

Só no minuto antes do último minuto, ao perceber que o silêncio nada mais faz do que desviar nosso olhar dos nossos medos, você criou coragem de verbalizar sua dor, de dar liberdade às suas recém-nascidas. Hoje percebo que tirar as algemas que lhes prendiam no minuto antes do último minuto foi o que fez o último minuto deixar de ser o último minuto. Em outras palavras, aquelas palavras antes algemadas, quando liberadas, tiraram a sua (nossa) vida das algemas de uma doença. A transformação do silêncio em palavra te fez encontrar, entre vírgulas, verbos e advérbios, a força de que você precisava.

Lorde, após ter coragem de transformar seu silêncio em linguagem, diz ter se dado conta de que não devia ter medo, o que faz com que eu me dê conta de que discordamos em um ponto. O medo não só vai existir. O medo deve existir. O medo das palavras é o que nos faz pensar em como seria a possibilidade de verbalizá-las. À princípio, pensamos que seria um perigo. Que seria horrível. Mas logo depois percebemos que estávamos certos desde o início: é um perigo. É horrível. Mas vale a vida correr esse risco.

Por isso, Indra-do-futuro, venho te fazer um pedido. Sei que você está muito ocupada à procura de uma apostila antiga. Sei que a vida anda corrida. Que tem os estudos, o namorado, a família, os amigos. Que tem o futuro, a profissão, as entradas nos documentos, os exames, o imposto de renda. Mas tem a escrita. E a vida. E é a escrita que traduz a vida. E a vida pode sempre ser salva pela escrita. A escrita adiou o último minuto. Além de ter transformado Gregorio, que era só ídolo supremo, em ídolo-amigo. Ou amigo-ídolo. Quanto à supremacia, espero que continue tão firme e forte quanto era em dois mil e já não lembro quando.

O que venho pedir, Indra-do-futuro, é que você não asfixie as palavras. Não as fixe em grades trancadas. Não as cale sob almofadas. Escreva o que precisa escrever. Não deixe de dizer o que precisa dizer.

“A morte não é mais do que o silêncio final. E pode chegar rapidamente, agora mesmo, mesmo antes de que eu tenha dito o que precisava dizer.”

Espero que encontre a apostila antiga. E que não perca a escrita. E cuidado com a alergia.


Indra-do-presente.