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sexta-feira, 10 de junho de 2016

chuveiro frio

Não houve alarme cantando. Nem alarme, nem muito menos galo. Não houve mensagem de WhatsApp assobiando. Nem mensagem, nem muito menos pássaro. Tudo o que se ouvia era o silêncio ensurdecedor que invade nossas casas todo dia, antes mesmo de o dia virar dia. Eram três da manhã. Ou dez para as quatro. Ou talvez quinze para as cinco. Não tenho como ter certeza: eu, certamente, ainda estava dormindo. Tudo o que sei é que ainda não eram seis. E que o alarme, o galo, o WhatsApp, o pássaro, todo mundo estava calado. E, mesmo que a vida ao seu redor ainda estivesse com áudio desativado, Felipe já tinha acordado. Não só tinha acordado. Pior: já tinha até levantado. E, quando você pensa que não pode piorar, você descobre que ele já tinha até saído do quarto. Calma; temos que lidar com essa situação da mesma maneira com que temos que lidar com a política brasileira: sabendo que sempre pode piorar. Porque, uma hora, piora: Felipe, não satisfeito em já ter levantado e deixado seu quarto antes das seis, já estava sob o chuveiro. Assim, como quem precisa urgentemente fugir do calor típico de janeiro. Só que era começo do mês de junho. E começo dos dias de frio. E o dia nem tinha começado a ser dia.

Acho que Felipe só lembrou do frio quando sentiu os primeiros pingos. A água gelada se chocava em sua pele e escorria, e como quem recebe um choque, ele tremia. Ardia como arde quando a água do mar esbarra numa ferida. Ardia por causa da água dolorosamente fria. Ardia como se em todo lugar houvesse uma ferida. Aos poucos, no entanto, as feridas pareciam já cicatrizadas: a água fria já não ardia. Talvez, porque, aos poucos, ia deixando de estar tão fria. O equilíbrio térmico da água fez com que o que antes era um choque doloroso pudesse agora ser um momento calmo e confortável sob o chuveiro, em que Felipe teria insights, refletiria sobre política, responderia mentalmente mensagens já visualizadas, juntaria ideias para escrever uma poesia, planejaria como seria seu dia e, claro: anteciparia o sofrimento que já imaginava que sentiria ao sair da água morna e se deparar com o vento frio do dia.

Não queria ter entrado no chuveiro tão cedo. Mas agora era a saída que lhe trazia receio. No começo, a gente nem imagina que vai arder de novo no fim. Mas a verdade é que é exatamente assim. Soa como spoiler. Mas acho que isso todo mundo já tinha percebido.

A anorexia não passa de um chuveiro ultrapassado e antidemocrático. Um chuveiro onde entramos sempre sem querer. Um chuveiro que não nos dá o poder de escolher entre as opções “verão” ou “inverno”. A água que cai dele é sempre dolorosamente fria. Eu estive por muito tempo lá. E lembro que doía, que ardia como quando a água do mar esbarra numa ferida. Uma hora, claro, tudo se equilibra. E quando a temperatura passa a estar morna, a gente chega a acreditar que é melhor se manter ali, afinal, assim, evitamos a dor que vamos sentir ao sair, como se adiar a dor fosse fazê-la deixar de existir.

Só que a água, escassa, uma hora acaba. Então a gente sai e logo se depara com o vento frio da vida. E arde como no início. Mas uma hora a vida volta a ficar morna. E já não há mais o que temer. Você já está livre, do lado de fora.
Não sei se Felipe escolheu acordar três da manhã. Ou dez para as quatro. Ou talvez quinze para as cinco. Não sei o que o fez ir até o chuveiro como quem precisa urgentemente fugir do calor típico de janeiro, mesmo sendo junho, e mesmo sendo dias de frio, e mesmo que o dia nem tivesse começado a ser dia. Também não sei o que o fez estar sob a água fria que lhe doía como uma ferida. Talvez tenham sido apenas escolhas. Apenas o fez porque quis, talvez.

Tudo o que sei é que ninguém escolhe a anorexia. Quando a gente vê, a gente já está no chuveiro, tremendo como quem recebe um choque, temendo a saída. E querendo perguntar a Felipe: “como você conseguiu se manter nisso aqui?”. Mas antes: “Por que acordar tão cedo?”