Era noite. Pelo menos era o
que o relógio do meu celular afirmava. Mas horário em relógio de celular é como
notícia em jornal global: está sempre suscetível a panes no sistema ou à manipulação
nociva das mãos humanas. Assim como os jornais dizem A quando a realidade é B
ou C, aquele relógio podia estar dizendo vinte e três horas, mas a verdade ser
onze, ou treze, ou quinze. Por via das dúvidas, é sempre bom checar em uma
outra fonte. Nos dois casos.
Mas, naquela noite – se é
que já era noite – não havia nenhuma outra fonte que dissesse que era noite além
do relógio do meu celular. O céu estava bem ali, mas a escuridão que
caracteriza a noite era substituída por uma luz azul, que logo se transformava
em vermelha, que segundos depois virava verde, e então ficava branca, e
amarela, e roxa. E então voltava a ser azul. E piscava agitadamente, acompanhando
cada acorde de cada instrumento, numa eficiência inacreditável. O som vinha do
pequeno palco e as luzes, que tinham o mesmo ponto de partida, pegavam carona,
até que ambos se chocavam com a multidão.
Multidão que, diga-se de
passagem, não parecia assim tão preocupada com o ritmo do som. Uns iam da
direita para a esquerda, dois passos pra lá, dois pra cá. Outros, da esquerda
pra a direita, dois pra cá, dois pra lá. Iam pro mesmo sentido: é agora. Vão se
chocar. Se chocam. Mas fingem que não se constrangem com isso. Dois pra cá,
dois pra lá. Deixam o choque pra lá e continuam a dançar. Uns tão sós quanto o
número um. Outros em par. Gente avançada na arte do dois pra lá, dois pra cá. Gente
estando ali só para postar que está lá. Gente cantando alguma música qualquer
que nem mesmo sabe qual é. E gente sentada em cima de um pequeno muro,
observando tudo, pra depois transformar aquele contexto em texto.
Sentada em cima de um muro,
observando tudo, os passos bem dados e os passos desastrados, as expressões
emocionadas, as entusiasmadas e as entediadas, eu me sentia em casa. Eu, que nasci
e cresci sem o dom do “dois pra cá, dois pra lá”, e já conformada com a
condição de pé de chumbo, me alegrava simplesmente em observar a alegria na
expressão dos que nasceram, cresceram e, naquela festa no Pelourinho, exibiam a
leveza nos pés.
Ali, em cima de um muro,
pude entender que é exatamente essa a perspectiva que a anorexia nos dá da
vida. Mas sem a parte da alegria, do riso pela diversão do outro. A anorexia
nos coloca em cima de um muro de onde podemos observar o mundo. E só. Sem se
alegrar com a alegria alheia - ou muito menos com a própria, que deixa de
existir. Presos em nós mesmos e em nossos medos, sem jamais participar ou
interagir com o que acontece do lado de fora. A gente só se cala e para pra ver
a vida passar, enquanto nossos conceitos distorcidos fazem a palavra ver se tornar sinônimo de viver.
Um dia, cansei. Doeu ficar
em cima do muro por tanto tempo. Assim como doeu sair. Foi um longo e exaustivo
trabalho convencer meus pés a seguirem em frente. Mas, se não tivesse feito
isso, ainda estaria só vendo a vida. E não vivendo. Não estaria me divertindo –
a meu modo – numa festa no Pelourinho. Não estaria rindo de mim mesma ou com o
riso dos outros. Não lembraria a importância do riso. Não perderia o medo dos
riscos. Semana passada, fui ao cinema com uma amiga. Ontem, fui a casa de outra
amiga. Amanhã a gente vai sair. E semana que vem é o início de um longo e
significativo capítulo da minha vida: a universidade. Isso é sair de cima do
muro. É entender que a vida não é um filme a que a gente assiste. É uma peça de
improviso em que a gente atua.
Agora caminho revezando
entre passos bem dados e passos desastrados, expressões emocionadas, entusiasmadas
e entediadas. Não só observando o mundo, mas participando de tudo. Digo, menos da
dança.