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sexta-feira, 20 de maio de 2016

sobre saídas

Então, de repente, alguém se levanta e caminha até a porta. Levando consigo a informalidade de quem começaria um texto com a conjunção “então” e a espontaneidade de quem passeia pelos cômodos da própria casa, esse alguém sai da sala de aula. Sai assim, sem antes ter feito qualquer código discreto que desse a alguém qualquer justificativa, fazendo com que todos substituam a concentração por uma silenciosa indagação: estaria esse alguém indo pedir ajuda na enfermaria? Ou aquele gesto indiscreto tinha como origem o desprezo por uma aula “que não vai mudar nada na minha vida“? O professor, também desconcentrado pela série de indagação, ensaia pedir alguma satisfação. Mas desiste no ensaio. Prefere assistir ao espetáculo. Aqueles passos não tinham pressa. Pareciam bastante calmos para acreditarmos que se direcionava à enfermaria. Aquele gesto parecia fazer parte dos típicos protestos que são feitos diariamente em escolas particulares por alunos do ensino médio. Protestos extremamente válidos, relevantes e maduros de alunos que criticam a educação brasileira porque seus professores, claramente despreparados, não lhes dão notas como cortesia, só porque seus alunos, claramente injustiçados, riem de piadas de WhatsApp e as transformam em conversa paralela enquanto a aula está sendo dada. Em meio a tanto despreparo e tanta injustiça, penso naquela saída indiscreta e sem justificativa. Não a acho agradável. A porta foi aberta e fechada e, nesse meio tempo, não se ouve qualquer palavra, qualquer licença, obrigada, de nada. Não houve nada. Ainda penso naquela saída. E sei porque ainda penso. Eu não sou aquele alguém que protagonizou o protesto extremamente válido, relevante e maduro. Mas, infelizmente, percebo uma semelhança entre nós. Eu estive nesse espaço aqui. E só não me levantei e caminhei até a porta porque não existem portas em espaços virtuais. Mas, sem qualquer justificativa, eu também saí. Sem licença, obrigada, de nada. Sem nada. Sem porta, até, eu saí. Saí transformando concentração (ou preocupação) em indagação (ou ainda mais preocupação). 

Escrevi ao longo de quase toda a minha internação. Mas bastou receber alta para que eu saísse dessa sala sem falar nada, como se a alta tivesse sido para ir embora daqui também. Na verdade, percebo que sou pior do que aquele alguém. Porque, diferente dele, eu ainda prometi que voltaria. Prometi que voltaria semanalmente. Eu poderia atribuir a culpa a deus e o mundo, inclusive ao português, que coloca “mente” no fim da maioria dos advérbios, como em semanalmente, como se estivesse dando essa ordem à gente: mente! Mas não posso atribuir a culpa a deus, ou ao mundo, ou ao português. Vou atribuir à correria da vida mesmo. Ao ENEM também. E, ainda que vá soar tão válido, relevante e maduro quanto o protesto relatado no começo desse texto, vou atribuir também à correria do último ano escolar. Atribuo a culpa da minha saída sem justificativa a tudo o que vivi no último ano escolar. À pressão incessante pelo vestibular, ao cansaço pela pressão incessante pelo vestibular e à incessante repetição da palavra vestibular. Atribuo a culpa também à liberdade que conquistei depois da internação. A tudo o que, desde então, eu vivi de bom. Às idas à praia, aos novos amigos. Aos antigos que viraram novos. Aos novos que, quando percebi, já eram antigos. Atribuo a culpa também ao amor. À cada momento em que o amor ocupou meu tempo. E ao modo como ele parecia que ia dar certo. Aí não deu. E, pela primeira vez, doeu. Minha ausência foi porque a vida implorou que eu a vivesse incansável e insistentemente. Acredito que para compensar os anos que a anorexia me tornou distante dela, me fazendo esquecer de como ela é bela. Eu queria vir aqui. Queria ter transformado em palavras as coisas bonitas, doidas e doídas que eu vivi. Mas, quando eu estava a caminho, a preocupação pelas provas do colégio e pelo vestibular chegava primeiro. O bom é que, no fim, deu tudo certo. Foi um ano bonito, do qual já sinto saudade. Eu não sobrevivi: eu vivi. E toda a preocupação resultou na minha aprovação na universidade. Sinto que agora já não tenho questões a compensar com a vida. E, tendo vencido a obsessão em ter preocupação, acabei descobrindo uma nova aptidão: a corrida. Porque já não há empecilho que consiga chegar primeiro que a minha vontade de escrever. Voltei. Não, a doença que me motivou a criar esse espaço não voltou a me ocupar. Voltei justamente porque preciso contar como a expulsei da minha vida. Voltei porque abandonaria uma parte de mim se abandonasse a escrita. 

Porque, desse espaço aqui, dessa sala, eu espero nunca receber alta.

Um comentário:

  1. Que coisa linda. Você me emociona demais.
    Que bom que voltou..., e que fique por bastante tempo.
    =****

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