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sexta-feira, 27 de maio de 2016

saindo do armário

Parece confortável ver a vida através da brecha da porta entreaberta de um armário. É fácil imaginar como é confortável: pense que, nesse momento, a chuva alaga a sua rua. O som da água dando socos no asfalto chega até o seu ouvido. Mas não importa: você até gosta de ir dormir ouvindo esse ruído. Pela janela, você pode ver a intensidade com que caem os pingos. Mas não importa: eles não te alcançam. Vão apenas se arrastar no seu vidro. O que é ótimo: ele já não estava mais tão limpo. Nesse momento, a cidade está dividida: uns estão molhados, andando por aí apressados. Outros estão em seus carros, estressados, atrasados, porque o trânsito está congestionado. Será que chego a tempo? Meu compromisso é às sete e meia. Mas ninguém chega no horário marcado. Todos chegam às oito. Mas já são nove. Aliás, por que o trânsito congestiona quando chove? Estão todos apressados, estressados, atrasados. Foi quando viram uma luz no fim do túnel. Não, não era uma solução para o atraso. Era só um raio. O céu está prestes a cair lá fora. Mas não importa: você não se molha. Você está no seu quarto, intocável. Não parece confortável? Pois é. Isso é viver dentro do armário.

Ninguém escolhe viver dentro do armário. A gente entra meio sem querer, sem perceber. A gente entra dizendo fazer o quê? O armário parece um lugar agradável quando o mundo parece não nos dar espaço. Aliás, quem pensa que o armário é um lugar pequeno, está enganado. O armário a que me refiro não é como os dos nossos quartos, em que nossas roupas vivem brigando por espaço – e, por isso, nunca estão muito bem arrumados. Falo sobre um armário em que há mais pessoas do que roupas (até porque nem todas essas pessoas estão usando roupas). Um armário que comporta gente que não se comporta como se comporta quem vive do lado de fora. Um armário onde quem entra sempre traz consigo ideologia não declarada, ou bandeiras não levantadas, ou vivências não compartilhadas.

Esse armário comporta gente diferente. Mas todos estão lá por um mesmo motivo: todos estão cansados do uso abusivo de eufemismos – isto é, a substituição de palavras ou termos considerados inadequados por palavras ou termos considerados mais adequados, mais agradáveis, mais leves, mais aceitos pelo mundo que não os aceita. O eufemismo já não é só dizer “bater as botas” ou “bater as asas” ou “ir desta para melhor” quando se quer dizer “morte”. É também dizer “impeachment” quando se deve dizer “golpe”. É dizer “mera piada” quando se deve dizer “atitude racista”. É dizer “brincadeira inofensiva” quando se deve dizer “homofobia”. É dizer “doença da moda” ou “vaidade” quando deve dizer “anorexia”. 

Todos os que migraram para o armário o fizeram por saudade de liberdade. Por sede de falar a verdade. Para fugir de um mundo no qual a comunicação é feita através de eufemismos. Eufemismos que deixaram de ser figura de linguagem e passaram a ser vícios. Mais que vícios: conceitos distorcidos. 
No armário, parecemos estar protegidos de tudo isso. Dos raios, dos pingos. Isso é viver dentro do armário. Não parece confortável? Parece. Mas, uma hora, a vida nos avisa: não há nada mais contraditório do que procurar no armário a solução para a saudade da liberdade. O armário nada mais é que uma fuga. É como ouvir os pingos se chocarem com o vidro e, ainda assim, fingir não saber que a chuva alaga a nossa rua.

Eu sei; há receio de sair do armário e dar de cara com um espelho. Nosso reflexo revela nossos medos. Mas, uma hora, a gente percebe que o medo de nos deparar com o lado de fora é o que faz parecer que o lado de dentro é confortável. Quando a gente sai do armário, tudo parece – literalmente – mais claro. Menos empoeirado. Só quando nos vemos livres, do lado de fora, diante do espelho, percebemos que antes estávamos presos. Não se encontra liberdade se escondendo da vida. Liberdade é, depois de mais de trinta textos, dizer: sim. Esse blog é sobre anorexia. É perceber que devemos sair do armário para mostrar ao mundo que não precisamos de eufemismos. Porque estar sob eufemismos é nada mais que estar escondido. E estar escondido não significa estar protegido.

Um dia, a gente percebe que, através da brecha da porta entreaberta de um armário, há a vida. E que, de dentro do armário, a gente pode até ver. Mas esquece de viver.

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