Tomas não sabia o que fazer.
Via-se naquela típica situação em que precisamos decidir entre ser o que somos
ou ser o que querem que sejamos. Preferia a primeira opção. Ser o que é
significava escolher a verdade. Escolher a verdade, no entanto, significava pôr
em risco sua liberdade. O que significava que talvez fosse melhor escolher a
segunda opção. Ou não. Tomas se recusava a baixar a cabeça diante da opressão. Considerava
covardia retratar o artigo que escreveu criticando o regime comunista apenas
para agradar a oposição (ou seja, a maioria). Mas seu texto oferecia risco a
ele mesmo. A começar pelo seu emprego. Sentado diante do seu chefe, ouvia que
seria necessário refutar sua própria ideologia política caso pretendesse
continuar no cargo. Foi quando disparou: “tenho medo de sentir vergonha”.
“Tenho medo de sentir
vergonha”. Peço desculpas pelo spoiler, mas essa frase não livrou Tomas da
pressão que o perseguia desde que tornou pública sua ideologia. Tudo o que essa
frase fez foi resgatar Tomas de um livro de Milan Kundera e colocá-lo aqui, num
blog sobre anorexia. Quem diria. Essa frase poderia ter ficado lá, no final da
página cento e setenta e cinco, despercebida. Poderia ter sido lida com a
desatenção de quem passa apressado, ignorando a beleza da vida ou a presença de
uma vírgula. Essa frase poderia até ter sido esquecida, se não houvesse nela
tanta semelhança com o que estamos falando aqui: a tal da anorexia restritiva.
A anorexia restritiva não se
restringe ao medo de comida ou à obsessão por caloria. O que foi dito por Tomas
é também um dos principais sintomas: o medo de sentir vergonha. E vice-versa. Há
a vergonha de sentir medo. E não para por aí: também temos o medo de sentir
medo. E, levando todas essas variações, ainda ganhamos a vergonha de sentir
vergonha. De brinde. Essa parece mais uma promoção daquelas que,
impulsivamente, queremos pagar sem pensar duas vezes. Mas bastaria pensar duas
vezes para enxergar que aderir a essa promoção seria como aderir a uma promoção
de maços de rúcula ou de Suco Tang: dificilmente alguém, em plena consciência,
o faria. Só que o termo “plena consciência” é o antônimo do termo “anorexia”. Seria
engraçado se não fosse trágico. Mas é tão trágico que chega a ser engraçado.
O medo de sentir vergonha
jamais será uma propriedade exclusiva de Tomas: quando se tem anorexia,
convivemos diariamente com esse sintoma. Ele passa a ser um inimigo íntimo. O
medo de sentir vergonha passa a ser tão frequente porque a vergonha é sempre
iminente: a vergonha se encontra no próprio nome da doença. Anorexia. O que você tem? Por que só vive no médico?
Com o que foi diagnosticada? Por que está tão magra? Por que foi internada?
Cada uma dessas perguntas teria como resposta uma mesma palavra. A palavra é a
vergonha. E o medo é que ela precise ser dita, pronunciada, revelada. Por isso,
cada uma dessas perguntas resgata o medo e a vergonha. E o medo de sentir
vergonha.
Em anorexia, tudo o que se tem
são oito letras e cinco sílabas. Ainda que designe uma doença grave, a palavra anorexia
não passa de uma palavra. Garanto que pronunciar “anorexia” não traz risco de
vida. Dizer “anorexia” não traz o gosto amargo de rúcula, ou artificial de Suco
Tang. Nem mesmo os dois gostos juntos (acho que isso só acontece mesmo quando pronunciamos
o nome daquele presidente do adeus à democracia, do implante capilar. Esse
nome, sim, temos que Temer pronunciar). No entanto, fugimos da palavra anorexia
como se ela tivesse sido terminantemente proibida. Alguns evitam porque parece
confortável se manter na zona de conforto em que a doença nos coloca, onde
adquirimos a ideia distorcida de que não se trata de anorexia, de que lá
estamos protegidas, quando tudo o que fazemos é fugir da vida. Tem gente que
evita assumir a doença por ter a certeza de que a palavra anorexia, ao invés de
ser ouvida pelos outros com empatia, vai ser recebida como um passaporte que
pudesse garantir a quem ouve o direito de fazer qualquer crítica desprovida de
conhecimento – e lotada de julgamento. Mas
não é só a vítima da doença quem a evita: a palavra anorexia é ainda mais
omitida do que discussões sobre drogas ilícitas. Mais engavetada do que a
corrupção da política.
O mundo parece estar mudo para
essa palavra, tornando-a omitida, engavetada. E não é fácil lutar contra o
silêncio de um mundo mudo e quase ensurdecido, porque a voz da minoria não
chega ao seu ouvido. Não é fácil assumir a batalha contra a anorexia porque a
anorexia ainda é um tabu dos mais tabus. É tanto um tabu que nem é visto como
tabu. É um tabu inclusive na lista dos tabus. Um tabu pouco entendido, pouco
discutido, mas muito tido. Pouco ouvido. Pouco assumido. Mas muito vivido.
É exatamente por isso que
estou aqui: porque só sendo desconstruído, vai começar a ser plenamente
entendido. E ativamente combatido.
E para isso, é preciso
discordar de Tomas. É preciso não ter medo de sentir vergonha.
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