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sexta-feira, 3 de junho de 2016

o medo de Tomas

Tomas não sabia o que fazer. Via-se naquela típica situação em que precisamos decidir entre ser o que somos ou ser o que querem que sejamos. Preferia a primeira opção. Ser o que é significava escolher a verdade. Escolher a verdade, no entanto, significava pôr em risco sua liberdade. O que significava que talvez fosse melhor escolher a segunda opção. Ou não. Tomas se recusava a baixar a cabeça diante da opressão. Considerava covardia retratar o artigo que escreveu criticando o regime comunista apenas para agradar a oposição (ou seja, a maioria). Mas seu texto oferecia risco a ele mesmo. A começar pelo seu emprego. Sentado diante do seu chefe, ouvia que seria necessário refutar sua própria ideologia política caso pretendesse continuar no cargo. Foi quando disparou: “tenho medo de sentir vergonha”.

“Tenho medo de sentir vergonha”. Peço desculpas pelo spoiler, mas essa frase não livrou Tomas da pressão que o perseguia desde que tornou pública sua ideologia. Tudo o que essa frase fez foi resgatar Tomas de um livro de Milan Kundera e colocá-lo aqui, num blog sobre anorexia. Quem diria. Essa frase poderia ter ficado lá, no final da página cento e setenta e cinco, despercebida. Poderia ter sido lida com a desatenção de quem passa apressado, ignorando a beleza da vida ou a presença de uma vírgula. Essa frase poderia até ter sido esquecida, se não houvesse nela tanta semelhança com o que estamos falando aqui: a tal da anorexia restritiva.

A anorexia restritiva não se restringe ao medo de comida ou à obsessão por caloria. O que foi dito por Tomas é também um dos principais sintomas: o medo de sentir vergonha. E vice-versa. Há a vergonha de sentir medo. E não para por aí: também temos o medo de sentir medo. E, levando todas essas variações, ainda ganhamos a vergonha de sentir vergonha. De brinde. Essa parece mais uma promoção daquelas que, impulsivamente, queremos pagar sem pensar duas vezes. Mas bastaria pensar duas vezes para enxergar que aderir a essa promoção seria como aderir a uma promoção de maços de rúcula ou de Suco Tang: dificilmente alguém, em plena consciência, o faria. Só que o termo “plena consciência” é o antônimo do termo “anorexia”. Seria engraçado se não fosse trágico. Mas é tão trágico que chega a ser engraçado.

O medo de sentir vergonha jamais será uma propriedade exclusiva de Tomas: quando se tem anorexia, convivemos diariamente com esse sintoma. Ele passa a ser um inimigo íntimo. O medo de sentir vergonha passa a ser tão frequente porque a vergonha é sempre iminente: a vergonha se encontra no próprio nome da doença. Anorexia. O que você tem? Por que só vive no médico? Com o que foi diagnosticada? Por que está tão magra? Por que foi internada? Cada uma dessas perguntas teria como resposta uma mesma palavra. A palavra é a vergonha. E o medo é que ela precise ser dita, pronunciada, revelada. Por isso, cada uma dessas perguntas resgata o medo e a vergonha. E o medo de sentir vergonha.

Em anorexia, tudo o que se tem são oito letras e cinco sílabas. Ainda que designe uma doença grave, a palavra anorexia não passa de uma palavra. Garanto que pronunciar “anorexia” não traz risco de vida. Dizer “anorexia” não traz o gosto amargo de rúcula, ou artificial de Suco Tang. Nem mesmo os dois gostos juntos (acho que isso só acontece mesmo quando pronunciamos o nome daquele presidente do adeus à democracia, do implante capilar. Esse nome, sim, temos que Temer pronunciar). No entanto, fugimos da palavra anorexia como se ela tivesse sido terminantemente proibida. Alguns evitam porque parece confortável se manter na zona de conforto em que a doença nos coloca, onde adquirimos a ideia distorcida de que não se trata de anorexia, de que lá estamos protegidas, quando tudo o que fazemos é fugir da vida. Tem gente que evita assumir a doença por ter a certeza de que a palavra anorexia, ao invés de ser ouvida pelos outros com empatia, vai ser recebida como um passaporte que pudesse garantir a quem ouve o direito de fazer qualquer crítica desprovida de conhecimento – e lotada de julgamento.  Mas não é só a vítima da doença quem a evita: a palavra anorexia é ainda mais omitida do que discussões sobre drogas ilícitas. Mais engavetada do que a corrupção da política.

O mundo parece estar mudo para essa palavra, tornando-a omitida, engavetada. E não é fácil lutar contra o silêncio de um mundo mudo e quase ensurdecido, porque a voz da minoria não chega ao seu ouvido. Não é fácil assumir a batalha contra a anorexia porque a anorexia ainda é um tabu dos mais tabus. É tanto um tabu que nem é visto como tabu. É um tabu inclusive na lista dos tabus. Um tabu pouco entendido, pouco discutido, mas muito tido. Pouco ouvido. Pouco assumido. Mas muito vivido.
É exatamente por isso que estou aqui: porque só sendo desconstruído, vai começar a ser plenamente entendido. E ativamente combatido.
E para isso, é preciso discordar de Tomas. É preciso não ter medo de sentir vergonha. 

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